Uma das melhores surpresas destes dias de confinamento foi a descoberta deste filme francês de 2018 e da sua jovem atriz-realizadora que, desconfio, ainda muito dela se fará falar. Porque O que me ficou da Revolução é um exemplo lapidar do que venho verificando nos últimos anos: se há cinematografia donde surgem propostas originais e extremamente imaginativas é a francesa. E não é por acaso que este título sai do alfobre desse nome essencial que é Robert Guédiguian, quer como realizador, quer como produtor.
Judith Davis faz de Angèle, uma jovem arquiteta precária, despedida do atelier para que os patrões de esquerda a substituam por uma estagiária, que lhes custará bem menos. Regressando a casa do pai, um maoísta, que nunca abjurou as antigas convicções, ela vive em permanente estado de revolta contra uma sociedade onde as injustiças estão à vista por todo o lado e as oportunidades de garantir a sobrevivência são mais do que escassas.
Essa revolta contém momentos hilariantes de comédia que. pelo absurdo das situações, lembram os Monty Pithon. Mas existem, igualmente, as competências teatrais, já que Judith Davis e a maioria dos atores do seu filme, integram o coletivo L’Avantage du Doute, cujas peças costumam ser criadas e interpretadas em conjunto e são influenciadas pela companhia belga Tg Stan, onde ela estagiou e até provavelmente trabalhou com Tiago Rodrigues, o atual diretor do Teatro Nacional D. Maria II.
Inicialmente O que me ficou da Revolução até foi uma peça de teatro, estreada em 2008, e já então com muito do que seria transposto para a sua versão cinematográfica. Que tem a enorme virtude de se emancipar dessa origem e assumir-se no seu novo suporte.
O capitalismo é, obviamente, denunciado como sistema desumano, que transforma as pessoas em escravas e as leva a abandonarem as vocações para se adequarem ao transacionável. Não admira que a melhor amiga de Angèle, a escultora Leonor, tenha de fazer anúncios ou produzir pezinhos em cerâmica para os pais apostados em imortalizarem o nascimento dos rebentos, como forma de pagar as contas.
Os que abandonaram os ideais de outrora vivem na nostalgia de quem haviam sido, enquanto os filhos vão lamentando terem nascido muitos anos depois da época em que julgariam serem felizes.
Mesmo os que se integraram na competitividade vigente acabam com patologias, que os tornam clientes inevitáveis das sessões de terapia de grupo organizadas por Angèle e Léonor. É o caso do empregado de um banco, que se julgava um vencedor e entra em crise por ter a consciência de, apesar desse bem inestimável que é um emprego, continua com a conta a descoberto. Ou Stéphane, o cunhado de Angéle, verdadeiro tubarão na gestão de empresas, e tendo às costas a culpabilização dos suicídios causados pelas suas decisões. Também ele desorientado num inevitável burning out.
O filme é também o do reencontro com uma mãe, há quinze anos afastada da vida da protagonista e cuja opção de vida simples numa aldeia de Ardèche, constitui uma alternativa de revolta contra o estado das coisas. E há o amor, outra porta de saída para Angèle na pessoa de um professor primário capaz de para ela criar uma versão divertida do rondó das Indes Galantes de Jean Philippe Rameau.
Consumada a descoberta de Judith Davis como atriz e realizadora, apetece dizer: Venha mais!
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