quarta-feira, setembro 16, 2020

(DIM) O Rei da Comédia, Martin Scorcese, 1982

 


Não sei quando vi O Rei da Comédia pela primeira vez. Ao estrear-se no cinema Londres, estava a minha filha a fazer quatro meses no dia seguinte e, lá em casa, as prioridades iam para os biberons e as fraldas em vez de se dar atenção aos filmes que se iam estreando. Depois, quando conheci esse encontro entre Martin Scorcese, Robert de Niro e Jerry Lewis - três criativos que, de formas diferentes, admirava - fiquei desiludido, vendo-o como exemplo de como a soma dos respetivos talentos não resultava em superlativa proposta à medida do que lhes conhecera.

A passagem do filme na Cinemateca permite reaferir essa opinião, olhando-o com outra maturidade e complacência. Embora dê razão ao comentário do Manuel Cintra Ferreira na altura dessa estreia, quando o considerou mais lewisiano do que scorcesiano. O que não admira, porque a costela cinéfila do realizador veio ao de cima, sendo muitos os momentos em que somos remetidos para gags dos filmes protagonizados por Lewis na sua época dourada. Vide o histerismo de Masha logo no início do filme, a proporcionar o encontro entre Jerry e o seu idólatra Rupert, ou quando uma velha senhora lhe interrompe o passeio pelas ruas de Nova Iorque para que fale ao telefone com o neto, retido numa cama de hospital. Essa propensão para a caricatura surge, igualmente, na cena em que Masha prende Jerry com fita adesiva e canta e dança para ele numa tentativa de sedução, replicando cena semelhante à de Shirley MacLaine em Artistas e Modelos. Mas a influência colhida nos filmes de ou com Jerry Lewis está plenamente sintetizada na personalidade de Rupert, nomeadamente no quanto ele é produto da educação de uma mãe castradora, omnipotente e invisível, em cuja casa ainda vive. No seu infantilismo, o personagem interpretado por Robert de Niro é uma réplica de muitos que vimos personificados por Lewis.

Scorcese deixa, porém, a sua marca pessoal no filme, mormente na cena em que o solitário Jerry Langford come sem gosto a refeição no apartamento, sem dar atenção ao filme de Samuel Fuller, que passa na televisão. Há nesse momento o mesmo gelado desespero de Travis Bickle em Taxi Driver em cena similar. Mas pouco mais se sente dele na feitura do filme, surpreendendo quanto a câmara aqui fica parada, não arriscando os movimentos dinâmicos, que lhe servem de peculiar marca identitária.

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