quinta-feira, setembro 17, 2020

(EQ) Bruno na casa azul

 


A frase impôs-se como se tivesse vindo ao seu encontro sem nada fazer por encontrá-la: C’est une maison bleue. E era-o, de facto! E encostada à colina, chegava-se a ela a pé.

Alguém falara a Cat, que ali seriam recebidos de braços abertos: não havia chave e a quem precisava de se alojar por uns dias, sempre arranjavam espaço para que instalassem a mochila e sítio onde descansassem. O problema foi quase não saber inglês, mesmo tendo tido pai britânico, ainda que não o visse há uns anos, desde que se divorciara da mãe. A Cat, pelo contrário, andava nas nuvens: aquela comuna era aquilo que sempre sonhara. Aquela prática de todos se juntarem ás cinco da tarde na sala de refeições, quando as brumas tomavam conta de São Francisco e as luzes começavam a acender-se por toda a extensão que dali abrangiam. Será que Lizzard, Luc, Psylvia ainda por lá andariam?

O projeto da viagem pela América na companhia da irmã não passara dali. Para quê ir mais longe se aquela comunidade Hungadunga no bairro de Castro continha tudo quanto procuravam? Os hippies, as drogas, o rock ‘n roll, o sexo sem preconceitos praticado com todos quantos suscitassem empatia para tal. Perdera Woodstock dois anos antes, mas perdurava ali o espírito dos muitos milhares, que tinham criado uma outra realidade mesmo quando a lama tudo pusera em causa? Nessa altura estava no regimento dos dragões paraquedistas a dar-se mal com os regulamentos militares. Nada que nele fosse incomum: também na escola fora expulso muitas vezes por indisciplina. 

Se, na altura, a dificuldade em conversar, o deixara à parte, recordava agora aqueles fins-de-tarde, quando Tom tocava guitarra e o Phil a kena, até a noite cair e os envolver no manto escuro donde só ressaltavam as luzes como pirilampos. E também os que iam chegando com notícias de quem não chegara a conhecer: os que se abrigaram noutros portos onde a felicidade era quotidiana bênção não esquecendo quem ali os ajudara a saber como construí-la. Ou os que, tendo recebido a ordem de marcha para o Viet, tinham atravessado para a outra margem do Huron ou do Erie e encontrado outros desertores do outro lado da fronteira.

Por essa altura já o cheiro da marijuana se espalhava por toda a casa. Havia quem limpasse o que todos tinham sujado com os resmungos de quem sempre se incumbia da tarefa, porque a maioria estava demasiado pedrada para o fazer. E ele quase não via Cat, que fazia vida à parte com quem ia amando e dormindo. O dilema era o que fariam quando, ao fim de um mês, caducassem os bilhetes de regresso a casa. Voltariam às rotinas do costume ou adotariam aquela como sede da sua nova existência?

Ele gostaria de regressar até por intuir que a ajuda de Serge e de Georges lhe seriam providenciais para encontrar o seu próprio caminho. Mas desconfiava que, por ela, Cat ali permaneceria...

Quase não conseguira reprimir o espanto, quando ela lhe veio dizer para se preparar pois, no dia seguinte, iriam para o aeroporto.

O que sucedera? Não lhe perguntara! Talvez nunca o quisesse saber! Certo é que assim tinha acontecido e, agora, a quase nove mil quilómetros de distância, a casa azul, mais do que encostada na colina, lhe ficara pendurada na memória. E ele perguntava-se o que lhe aconteceria se alguma vez São Francisco colapsasse, como sucedera no início do século? Desapareceria ou encontraria artes de se manter de pé? Pelo menos na sua cabeça ela ganharia artes de se eternizar...

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