quarta-feira, outubro 30, 2019

Diário de Leitura: «Discursos» de Mark Twain


O grande acontecimento editorial deste mês foi o lançamento dos «Discursos» de Mark Twain pela Tinta-da-china, cuja leitura substitui eficazmente os mais potentes antidepressivos a quem for propenso à melancolia. De facto poderíamos pensar que estes textos do autor de «Tom Sawyer» teriam menos interesse por se destinarem a ocasiões com alguma solenidade, mas isso seria esquecer que a vocação para a ironia era tal, que o riso (ainda por cima inteligente!) vem inesperadamente ao nosso encontro, pondo-nos a pensar na capacidade de emergirem as vertentes divertidas de estórias quase banais.

O livro faculta ainda outra surpresa: dar conta de ainda estar vivo o excelente ator de composição, que foi Hal Holbrook, mesmo que com provectos 94 anos. Se dele lembramos inúmeros papéis secundários em filmes ou séries televisivas onde a sua presença sempre marcou a diferença, desconheciamos-lhe o percurso no teatro, onde tomou os textos de Mark Twain como pretexto para os seus monólogos aparentados ao que viria depois a consagrar-se como stand by comedy. Ler-lhe na Introdução os fundamentos da construção desses espetáculos constitui um bónus complementar ao que virá a seguir. Até porque é dele que ficamos a saber a falsidade de todas as gravações profusamente difundidas da voz do escritor e mais não são do que réplicas a cargo dos seus imitadores. Ou como Twain conseguia aparentar discursos e outras intervenções como se estivesse a improvisar naquele momento, mas investia numa trabalhosa preparação capaz de incluir vários textos possíveis, depois escolhidos de acordo com as circunstâncias.
Num dos mais saborosos textos do livro lemos o caso de um infeliz orador, que procurava imitá-lo nessa sugestão de oratória criada no próprio momento. Muito menos dotado, viu a plateia abrir clareiras quase no início da preleção quando, inadvertidamente, o porteiro apareceu a solicitar a ida de uma senhora aos bastidores para apoiar o marido acabado de sofrer um acidente. Várias espectadoras aproveitaram a oportunidade para saírem como se fossem elas a procurada. E logo as remanescentes as imitaram, quando o mesmo porteiro voltou a aparecer minutos depois dizendo ter-se enganado no nome anteriormente anunciado tratando-se de um outro. Razão para que, à falta de quem o ouvisse, a conferência logo ali acabasse.
Os textos de Twain seguem esse estilo: de situações anódinas retirar ilações com um inequívoco sentido satírico, senão mesmo ideologicamente orientado para as causas, que o motivavam, a começar pela urgência no combate ao racismo.

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