quinta-feira, outubro 24, 2019

Auditórios: Clara Schumann, muito mais do que mulher de Robert


Quando se pensa em Clara Schumann, inevitavelmente consideramo-la «a mulher de Robert Schumann». O que constitui enorme injustiça para uma meritória compositora e, sobretudo, brilhante pianista, cujo precoce talento a levou a dar o primeiro concerto quando tinha apenas nove anos.
Nascida em Leipzig em 13 de setembro de 1819 tinha por pai o dono de uma pequena oficina de construção de pianofortes e professor dos alunos, que conseguia angariar. A mãe, pianista com algum nome, abandonou o domicílio conjugal, quando ela tinha apenas quatro anos e sempre lhe deixaria um sentimento de orfandade, prolongado pela vida fora.
Friedrich Wieck seria determinante na sua vida até aos vinte e um anos: além de a instar a escrever um diário desde muito cedo - enquanto ela não aprendia a ler incumbiu-se ele próprio da tarefa! -, deteta-lhe o talento para a música e decide potenciá-lo. Quando Clara começa a atuar em público, não só Friedrich quer demonstrar os dotes de pedagogo, como também o de competente construtor de instrumentos musicais porque, mesmo em tournée, faziam-se acompanhar para as atuações de um dos pianos saídos da empresa familiar.
É também estimulada para que componha obras de sua autoria e as criações sucedem-se até aos vinte anos, quando verte para as partituras mais de metade das que assinará ao longo da vida.
A estrela do progenitor empalidece quando, aos onze anos, Clara apaixona-se por um dos alunos dele, Robert Schumann, então com vinte anos. De Paris, Londres, Praga ou Viena, onde  vai colhendo sucessivos êxitos como intérprete, escreve ao objeto do seu amor e começa a dele receber provas de ver-se retribuída. 
Friedrich opõe-se, naturalmente, ao namoro e, ainda mais, ao noivado. Não só o carácter taciturno do aluno o inquieta como, sobretudo, adivinha os condicionalismos que se imporão a Clara quando casar e tiver filhos. Como conciliar a vida de mãe de família com a de compositora e concertista?
Só quando chega aos vinte e um anos é que Clara pode, finalmente, casar com Robert, mesmo apesar de, entretanto, o ter pretendido garantir por via judicial.
Os primeiros anos da vida do casal são os que justificam a ideia comum de se ter tratado de um dos mais famosos pares amorosos do período romântico. A complementaridade parece possível com Robert a compor e Clara, muito mais dotada no piano, a interpretá-las e a propor-lhe as alterações, que a concretização do que lê nas partituras lhe sugere.  Ela própria aproveita a escassa disponibilidade da vida doméstica para prosseguir a criação de obras da sua autoria.
Nessa altura Robert ainda aceita a continuação das tournées, tanto mais que garantem o sustento do casal, em breve contemplado com a primeira dos oito filhos. Mas depressa começa a sentir-se incomodado com as ausências dela, ou em alternativa, quando a acompanha, com o reconhecimento de quantos contactam, em detrimento  da sua subalternidade. Esse mal estar ocorre de forma mais acentuada em Moscovo, quando dedicam a Clara provas inequívocas de admiração e se surpreendem por, a seu lado, ele «parecer» que sabe alguma coisa de música.
No regresso a Leipzig Robert afunda-se ainda mais nas já habituais depressões e nem a mudança de ares para Dresden, onde a família instala-se durante quatro anos, lhe revertem a prostração. Clara, por seu lado, vai tendo o banho de realidade previsto pelo pai: quase a um ritmo anual os filhos vão nascendo, impedindo-a de compor, mas sobretudo de manter o ritmo de espetáculos para que era solicitada.
Uma breve esperança surge, quando oferecem a Robert o primeiro emprego remunerado: a direção artística da orquestra de Dusseldorf. É aí que conhecem Brahms e Joachim, que se tornarão amigos da família. O primeiro, apaixonado por Clara, será o seu principal apoio quando, cinco anos depois tem de internar o marido no manicómio de Endenich. Além do trauma da rejeição dos membros da orquestra, que recusaram verem-se por ele dirigidos, Robert sente-se acossado por vozes a interpelá-lo na própria cabeça.
Proibida de vê-lo, já que os médicos consideram o paciente demasiado fragilizado para submeter-se a grandes emoções, Clara manda Brhams visitá-lo frequentemente para lhe dar conta da evolução. Que será involução, já que, quando o revê moribundo, dois anos depois, é para dele se despedir.
Clara, então com 36 anos, arregaça as mangas e vai à luta: começa um novo ciclo de tournées, quase ininterruptas, que a transformam numa verdadeira popstar da época. Por toda a Europa requerem-na para espetáculos em que se apresenta de luto vestida, associando essa imagem de santa viúva com a do enorme talento enquanto intérprete. Conseguiu assim acumular razoável fortuna, que lhe possibilitou a compra de uma casa de campo em Baden Baden, onde se passou a reunir todos os verões com os filhos, vindos dos respetivos internatos, e com Brahms, aí sempre presente numa ambígua relação cuja verdadeira natureza ficou cingida ao recato dele e da anfitriã.
Em 1877, sentindo o reumatismo a tolher-lhe as capacidades, aceitou o cargo de professora de piano no Conservatório de Frankfurt, continuando a dar concertos mais espaçadamente, realimentando a aura da excelência das suas interpretações.
O último concerto aconteceu em março de 1891, quando faltavam cinco anos para ser sepultada ao lado de Robert.

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