sábado, outubro 12, 2019

Diário das Imagens em Movimento: «Zétwal» de Gilles Elie-dit-Cosaque (2008)


Absolutamente caído dos céus - e logo explicitarei o quão justificada é a expressão! - surgiu-me este filme rodado há uns anos e que me garantiram as mais desabridas gargalhadas perante um ecrã de (home)cinema. É que se as Antilhas têm-nos dado a ver histórias, que têm preocupações sociais relacionadas com as aspirações das populações - mormente as de Cuba, Haiti ou Jamaica - não me recordo de alguma delas ter usado a sátira de uma forma tão hábil, mesmo levando em conta que essas ilhas do Caribe têm alguns dos carnavais mais coloridos e ruidosos dos organizados na época própria.

Gilles Elie-dit-Cosaque preparava-se para rodar um documentário sobre os combates de galos na região, quando entrou em contacto com um homem que, a cada um dos seus galináceos dava nomes de astronauta. Surgiu assim a ideia de lhe homenagear o irmão, Robert de Saint-Rose que, em 1974, projetara ser o primeiro astronauta da Martinica a pisar a superfície da Lua. Para consubstanciar o caso, eis-nos perante o envelhecido caderno de apontamentos do intrépido explorador espacial, alguns recortes da imprensa, imagens da época em super 8 e os testemunhos de muitos dos que o terão conhecido, entre os quais se conta Patrick Chamoiseau, um escritor que não me admiraria nada ver galardoado com o Nobel da Literatura num dos próximos anos.
E, no entanto, a história cedo se nos torna tão improvável, que começamos a duvidar da veracidade do que nos é apresentado: é que no dia aprazado, e coincidindo com uma visita de Estado de Giscard d’Estaing à ilha, Robert Saint-Rose decide proceder ao lançamento do seu foguetão cujo carburante é ... a poesia  de Aimé Césaire, o grande escritor da negritude.
Em nenhuma altura do filme o realizador deixa-nos pressupor tratar-se de uma farsa, porque a ambiguidade é habilmente orquestrada. Até vemos imagens da época em que Saint-Rose procura ser recebido pelo poeta e político para que o ajude a resolver um problema pertinente: os versos disponíveis só lhe dariam combustível suficiente para chegar à Lua, mas não para dela regressar. Daí que melhor valeria que Césaire abandonasse os cargos políticos e se dedicasse a tempo inteiro à poesia para lhe suprir a necessidade.
Nessa altura já tomamos por boa a intenção de Elie-dit-Cosaque: mais do que o retrato de um excêntrico estamos confrontados com uma psicanálise da sociedade das Antilhas em geral e da Martinica em particular. Confirmando o propósito o realizador confirma: “queria homenagear a inventividade crioula, mas acho que esse personagem simboliza as expectativas e esperanças dececionadas do povo das Índias Ocidentais. Todas as sociedades precisam de acreditar nas suas utopias e na ideia de autotranscendência.” Aquela que a poesia de Césaire denotava quando falava de ter soado a hora do seu povo.
É por isso que Gilles Elie-dit-Cosaque recusa ver no seu filme uma espécie de paródia, mesmo admitindo ter-se divertido a congeminar a forma de levar muitos a acreditarem na veracidade da intriga. Até houve quem se deslocasse ao local do «lançamento» do foguetão para procurar vestígios do sucedido ou falar com quem tivera a oportunidade de conhecer o frustrado astronauta de quem nunca mais ninguém pousara os olhos desde então. Poupando-os à deceção decidiu deixá-los entregues à sua mistificação, justificando não querer diminuir-lhes o entusiasmo, portando-se como o adulto que desmente a existência do Pai Natal às crianças que nele acreditam.
Concluída a descoberta de «Zetwal», que significa «estrela» em crioulo, fica o alerta para não perdermos a oportunidade de experienciarmos a inventividade do realizador se tivermos a oportunidade de com algum filme seu voltarmos a deparar.

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