domingo, outubro 27, 2019

Diário de Leituras: «O senhor Breton e a entrevista» de Gonçalo M. Tavares


Continuo a ter grandes dificuldades na leitura dos romances daquele que é um dos mais celebrados escritores portugueses pela remanescente crítica, que se oficia em espaços cada vez mais raros. Reconheço-lhe o talento, adivinho-lhe a preocupação em tudo questionar, quer nas formas, quer nos conteúdos, solicitando-nos para filosofares sem nos propiciar propriamente as chaves de entendimento para que neles vejamos facilitado o esforço e fica no final um certo amargo de boca, porque quase nos sentimos culpabilizados por concluirmos pela futilidade do esforço investido na decifração das páginas acabadas de ler.

Publicado em 2008 este romance tem dez capítulos, cada um deles com uma pergunta endereçada ao papa do surrealismo. Mas quem lhas dirige vai formulando hipóteses, que partilha com o desconcertado leitor. Por exemplo no primeiro capítulo temos a noite a conter dois lados, um dentro de casa (o da tranquilidade e do esperado) e outro fora dela (o do medo e da estranheza). Ou os homens que se erguem e não são  a mesma coisa que os derrubados.
No segundo capítulo conclui-se pela existência de duas poesias, uma com tendência para a paisagem, a outra disposta a contribuir para o movimento futuro das coisas. Concluindo-se que nunca passou fome, quem proclama alimentar-se de poesia.
No terceiro temos o senhor Breton a concluir para si próprio quanto mais fácil seria a realidade se se visse poupado a perguntas  Tudo seria, então, muito mais simples. Mas teria sempre de contar com a  outra metade: a da reflexão.
No quarto temos um escritor a acreditar mais na palavra deus do que no Deus propriamente dito.
No quinto a pergunta retoma questão aparentemente resolvida em capítulo anterior: poderão os versos dos grandes poetas alimentar um homem durante alguns dias?
A estética surge noutra questão, quando se considera importante a compreensão de não surgirem ideias promissoras na cabeça só por se usar um chapéu bonito. Até porque a estética é assunto que pouco dialoga com o raciocínio.
Volta então a questão que parece percorrer todo o romance: poderá um livro conduzir um cego no meio de uma cidade cheia de trânsito? Poderão os livros funcionar como lâmpadas, quando pousados na mesa de um quarto escuro sem eletricidade?
Convenhamos que algumas questões podem revelar pertinência, mas a chegada à última página constitui um certo alívio.

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