sábado, outubro 26, 2019

Diário das Imagens em Movimento: «Happy end» de Michael Haneke (2017)


Há realizadores particularmente talhados para proporem filmes, que nos incomodam, nos inquietam, nos assombram. O que nada tem de negativo, porque o pior a esperar de uma proposta cinematográfica é ela deixar-nos indiferentes e ser prontamente esquecida. As fitas chiclete não são propriamente aquelas que devamos valorizar.
Somos sacudidos pela abordagem dos reversos da sociedade contemporânea, ou seja dos que vivem clandestinos por trás das tranquilizadoras aparências, mas nelas influem muitas vezes na forma de inesperadas explosões catárticas.
Nos filmes de Haneke existem sempre sinais de agressividade à volta dos personagens. No caso concreto de «Happy End» damos com sindicatos em greve, inspetores do trabalho a suspeitarem de práticas crapulosas, condutores apressados a buzinarem e cães agressivos, capazes de morderem por desconhecida razão. Mas, pior ainda, testemunhamos alguns dias na vida de uma família disfuncional, onde o conforto burguês não serve de consolo para a falta de amor e de comunicação.
O anfitrião - um dos derradeiros papéis de Trintignant de quem um dia destes ouvimos a notícia do óbito! - tem a consciência da progressiva senilidade e procura uma «alma grande», que o ajude a abreviar o desenlace. Nesse sentido Georges Laurent assegura a continuidade do personagem de «Amor», filme anterior de Haneke em que matava a esposa e depois se suicidava.
Há Eve, a neta de 13 anos, assumida pela espantosa Fantine Harduin, que conseguira o crime perfeito ao envenenar a detestada mãe e mudava-se para a casa familiar do lado paterno, detetando no progenitor uma singular deslealdade para com a nova esposa, daí temendo ver-se-condenada a um lar da assistência pública.
A tia, interpretada por Isabelle Hupert, gere uma empresa de construção em crise devido à progressiva loucura do filho, decididamente inepto para continuar a exercer cargo de direção. E, por isso mesmo, incapaz de vir a assegurar-lhe a sucessão.
São muitos os dramas e os segredos familiares não faltando a referência aos refugiados até por situar-se toda a história na região de Calais. E todos - quer os burgueses, quer os candidatos à travessia da Mancha - continuam num precário impasse por Haneke escolher um final aberto dando ao espectador a escolha do que a todos a seguir sucederia. Pode ser happy se assim o desejar, mas a opção contrária também não soa desajustada do que ficou para trás...

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