sábado, outubro 19, 2019

Diário de Leituras: «Os Passageiros da Noite» de Haruki Murakami


Tudo acontece entre o anoitecer de um dia e o alvorecer do seguinte com o leitor a acompanhar as vicissitudes por que passam os personagens através das deslocações que fazem dentro do mesmo bairro de Tóquio e dos diálogos que têm entre si. Do que pensam ou sentem  só se pode conjeturar, porque lembram personagens de um filme a passar-nos defronte do olhar. Mas uma característica podemos identificar-lhes como comum: todas estão num impasse à espera de que algo de diferente lhes suceda.
Mari passa a noite a ler em restaurantes  ou a passar umas horas num love hotel, onde ajudara a respetiva gerente a entender-se com uma prostituta chinesa violentamente agredida por um cliente, quando as regras haviam-lhe chegado na pior altura. É ela a primeira a sinalizar a solidão como uma das insuportáveis consequências de um tipo de sociedade avesso à criação de laços de solidariedade - e ainda menos de afeto - entre quem nela faz por sobreviver.
Takahashi anda por ali, porque é madrugada adentro, que ensaia com o seu grupo de jazz, mas está quase decidido a deixar-se de presunções artísticas para prosseguir o interrompido curso de Direito, dando satisfação à família, ansiosa por o ver assentar como advogado. Ele adequa-se ao estereotipo de uma geração, que deixou para trás a irreverência de anos idos, e anseia por «normalizar-se» num enquadramento inimigo da sua individualidade.
Eri Asai está a dormir há dois meses, presa num sortilégio maligno, que a leva a transferir-se para outra dimensão de cuja natureza só adivinhamos no outro lado do ecrã de um televisor paradoxalmente desligado da corrente , ou vendo-se deste lado vigiada por um sinistro Homem sem Rosto. Se a beleza sempre lhe abrira imensas oportunidades de trabalho e de autossatisfação talvez nela resida a origem da prisão em que se vê sem esperanças de libertação.
Há o informático, que agredira a prostituta chinesa e desconhece o que o espera: denunciado por uma câmara de vigilância a foto já está distribuída ao gangue do proxeneta para nele se exercer a devida vingança (uma orelha a menos!). Pela noite fora vai deambulando muito perto dos que o procuram e tem a sorte pelo seu lado, passando-lhes despercebido. Mas adivinha-se que ela não durará sempre.
Korogi é uma das empregadas de limpeza do love hotel com nome de filme de Godard («Alphaville) e vive ali clandestina, também ela vem fugida de uma ameaça. Se do tipo esotérico como com Eri Asai, ou simplesmente relacionada com as yakusas, nunca dará para o percebermos.
Kaoru, a gerente de hotel, tem estatura avantajada e modos bruscos, mas revela-se sensível às injustiças, não enjeitando corrigi-las, mesmo que por linhas tortas. Seria a mais improvável encarnação de uma certa ética no relacionamento com os  outros, mas a noite revela-lhe um íntimo assertivo.
O romance suscita uma atmosfera misteriosa, que só o nascer do dia tende a dissipar. Quando a luz substitui as sombras, Mari talvez consiga libertar a irmã do seu torpor com uma réplica do beijo da Bela Adormecida. E talvez possa então ir com outra tranquilidade para o projetado estágio na China, tanto mais que Takahashi parece alimentar um interesse genuíno por ela e promete ficar à espera.

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