sexta-feira, outubro 18, 2019

Diário das Imagens em Movimento: Zéfiro cá, Zéfiro lá!


Da mitologia grega lembramos Zephyros como um dos filhos de Eos e de Astreu, aquele que, Deus do vento do oeste, anunciava a primavera com suave brisa e fecundava as éguas da Lusitânia tornando-as invulgarmente velozes.
Noutra das histórias com ele relacionadas, fizera triângulo amoroso com Apolo para conquistar os favores amorosos do belo Jacinto, príncipe espartano muito dotado no lançamento do disco. Sentindo-se preterido em favor do rival, Zephyros teve tal crise de ciúmes, que soprou em sentido contrário o disco lançado por quem muito amara, matando-o com a violência do golpe certeiro na cabeça. Perante o infausto acontecimento Apolo decidiu homenagear o amante utilizando-lhe o sangue para criar uma flor com o seu nome.
Estando relacionado com tão sugestivos mitos não se pode dizer que Zéfiro seja popular o suficiente para se fazer aparecido nos nossos dias. Mas, singularmente, veio ao nosso encontro em dois filmes vistos um a seguir ao outro e só tendo em comum homenagearem dois prodigiosos criadores: José Álvaro de Morais e Pina Bausch.
O primeiro assinou a realização de um filme que tomava por título o nome do referido deus. O segundo continha o testemunho de uma colaboradora próxima da encenadora do Tanztheater de Wuppertal, que lhe associava a suavidade de um zéfiro, quando dirigia uma das suas maravilhosas criações.
Indo mais além nas similitudes podemos reconhecer num e noutro a enorme exigência. Em «Silêncios do Olhar» o diretor de som Vasco Pimentel desmentia tratar-se de hesitação o tempo levado pelo realizador desaparecido em 2004 para concluir os projetos. O problema era concetualizar uma cena de mil maneiras diversas e, concretizando a que mais adequada lhe parecera, logo intentava experimentar outras porventura mais eficazes no pretendido objetivo.
Noutra das histórias, recordadas no filme, avulta a de ter ganho o Grande Prémio do Festival de Locarno com «O Bobo» e ter enfurecido o produtor, António da Cunha Telles. Este, ansioso pelo retorno do investimento com a publicidade complementar garantida por tão importante reconhecimento internacional, viu José Álvaro de Morais frustrar-lhe o plano por ainda ter algumas alterações para fazer. Quatro anos depois, quando enfim o concluiu de acordo com o congeminado na mente, já o efeito Locarno há muito ficara esquecido.
O documentário de José Nascimento é um grande tributo a um criador sobre quem quase todos os testemunhos coincidem em encomiásticas recordações. Exceção feita a Beatriz Batarda ao contar um episódio revelador de um lado mais sombrio, quiçá paranoico, que, na altura a deixou desconcertada.
Ao chegarmos ao genérico final fica a enorme vontade de voltar aos (poucos) filmes por ele rodados, desde «Ma Femme Chamada Bicho» (sobre o casal Vieira da Silva/ Arpad Szenes) até ao derradeiro, «Quaresma», estreado no ano anterior ao da sua morte, passando pela tal adaptação do romance de Herculano, situando-o em Lisboa logo após o 25 de abril, ou por esse «Zéfiro», que constituía exultante viagem pelo sul português com os seus mitos e lindíssimas paisagens.
Quanto à outra suave criatura, desaparecida inesperadamente há dez anos, Anne Linsel aborda em «L´Héritage de Pina Bausch» o modelo de preservação do seu legado na companhia que fundara em 1973. Durante o ano ainda em curso, recriam-se algumas das famosas coreografias da sua carreira - «1980» ou «Palermo, Palermo» - e inova-se com um novo espetáculo - «Bon Voyage, Bob» - dirigido pelo jovem encenador norueguês Alan Lucien Øyen.
Embora a herança pareça bem gerida pela Fundação criada pelo filho e em cujo edifício a companhia ganhou nova sede, notam-se contradições entre os seus responsáveis quanto aos rumos a seguir, havendo quem queira focalizar-se na reiterada utilização do reportório existente enquanto há defensores do contrário ou seja no recurso a jovens encenadores capazes de encontrarem em Wuppertal as condições obtidas por ela no início do percurso artístico e, a seu exemplo, possam desabrochar numa admirável sucessão de peças inolvidáveis. Como essa «Mazurca de Fogo», que tivemos o privilégio de usufruir durante a Expo 98, duradouramente conservada nas nossas memórias.

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