domingo, outubro 13, 2019

Diário de Leituras: Afonso Cruz, José Luis Peixoto, Murakami e outros


Gosto de me dividir ao mesmo tempo por várias leituras: entre os livros, que tenho na secretária ou na mesa de cabeceira vou pegando nuns e noutros, lendo-lhes duas ou três dezenas de páginas de cada vez, deixando assentar os pensamentos laterais, que me suscitam, à medida que me vão revelando o seu conteúdo. Estas notas de leitura não têm, pois, de ser definitivas porque o interesse de um romance, ou de um ensaio, reside muitas vezes na reviravolta inesperada, que nos atordoa e nos faz corrigir a ideia dele entretanto formulada.
Aconteceu assim com «O Pintor Debaixo do Lava-Loiças», título de Afonso Cruz, que dei por terminado há um par de dias. Mas isso não é de estranhar, porque o autor é dos mais imaginativos de quantos atualmente escrevem na nossa língua, com a vantagem de ir entremeando a estória com alguns pensamentos profundos, que apetece sopesar mais duradouramente. Em causa as grandes questões existenciais, mas também sociais, porque nada tendo de aparentemente ideológica, a prosa de Cruz remete invariavelmente para o que pressupõe mudança qualitativa no sentido de maior justiça e igualdade.
Neste romance ele parte de um quadro pendurado numa casa da Figueira da Foz onde viveu a meninice e faz sair do anonimato o seu pintor, um tal Sors, nascido em Bratislava, quando a cidade era periférica urbe do Império Austro-Húngaro  e ele ali cresceu a desenhar olhos abertos e fechados nos seus inesgotáveis cadernos. Uma desilusão amorosa leva-o a emigrar para os Estados Unidos, onde estava recatado do ascendente nazismo, quando a urgência em resgatar a mãe, entretanto internada num asilo para alienados, o leva a meter-se na boca do lobo. O título remete para o esconderijo a que teve de recorrer para safar a pele.
Manicómio é igualmente um sítio a que recorre José Gardeazabal no conto «Adeus» em que um narcísico, que utiliza maiúsculas no quanto a si reporta - e é, a seu ver, quase tudo! - logo se cura, quando conhece o amor na pessoa de uma outra paciente. Ameaçado de ser posto na rua, porque deixara de ter os anteriores sintomas, recusa  ostensivamente esse reencontro com o exterior exigindo ficar no espaço finalmente entendido como seu.
Amor não é decerto o tema de outro conto da autoria do brasileiro Sérgio Sant’Anna: «O Bordel (última redação)». Pelo contrário o narrador é um septuagenário, que sonha com idas ao bordel e, em vigília, recorda as «trepadas» do passado com mulheres de quem nem recorda outra coisa senão os sexos generosos. Se necessitar de exemplos de escrita andropáusica este pequeno texto de sete páginas é eloquente exemplo.
Dos romances, que ando agora a ler, enfatizo «Autobiografia» de José Luís Peixoto, que remete para o universo saramaguiano, não só em certos momentos da escrita, mas também nos personagens com nomes dele referenciais. Um jovem escritor, enleado na falta de inspiração para a escrita de um segundo romance - o primeiro tivera modesto sucesso nalguma crítica e quase nenhum êxito comercial! - vê-se incumbido de escrever uma biografia de duzentas páginas sobre o escritor a quem «Memorial do Convento» e outros grandes títulos valeriam o Nobel  no ano seguinte. Dele conhecemos o nascimento numa família da periferia lisboeta com a mãe dada a beatices e, sobretudo, a estranhos delírios satânicos quando o marido lhe quer impor a partida para a emigração. Ou o comportamento cábula durante a faculdade, ciente de ambicionar a escrita de romances e não tanto estudar os dos outros e ensiná-los. Ou o prévio encontro com Saramago, dez anos antes, quando quisera ensaiar desajeitado gesto de ladrão na Feira do Livro, sendo apanhado, valendo-lhe então o gesto magnânimo do escritor, ali a autografar romances.  Ainda vou no quinto capítulo, mas é decididamente leitura que recomendo.
Alternativa completamente diferente é a de Haruki Murakami em «After Dark» até porque a escrita aproxima-se mais de pré-argumento cinematográfico do que de Literatura com maiúscula. Mas como o davam como potencial galardoado com um dos Nobeis deste ano andei a revisitar-lhe a obra nos últimos meses e estou a dar o esforço como concluído com o enredo que, em tempos me dera maior satisfação: há uma rapariga a gastar a madrugada numa hamburgueria lendo um romance donde só despega os olhos para, enfadada, aturar quem se senta à frente: Takahashi, um músico com que saíra dois anos atrás, mas estava visivelmente mais interessado no biquíni da irmã, ou Kaoru, a gerente de um love hotel, que lhe vem pedir ajuda para comunicar com a jovem prostituta chinesa acabada de ser espancada num dos quartos, porque a menstruação aparecera-lhe no pior momento suscitando a cólera assassina do respetivo cliente.
E, em paralelo, há Eri Asai, a irmã de Mari, em profundo sono na penumbra do quarto, alheada do homem sem rosto, que sai do ecrã do televisor, paradoxalmente desligado da tomada.
Reconheço as principais características de Murakami desde o fascínio pelos bares quase vazios onde soam discos de jazz em vinil (ele próprio geriu um!) até essa misteriosa alteridade, que nada tem a ver com a nossa sóbria existência.
E ficam aqui por referenciar outras leituras que me vão, entretanto, ocupando: uma tentativa de Camus em dar existência a Mersault antes de «O Estrangeiro» ou o volumoso ensaio de António Cândido Franco dedicado a Mário de Cesariny.

Sem comentários: