quinta-feira, dezembro 01, 2016

(DL) Mia Couto e Mathias Enard

1. Um dos romances, que mais apreciei no ano transato foi «Mulheres de Cinza». a 1ª parte da trilogia de Mia Couto passada no final do século XIX, quando Gungunhana ainda era o imperador de Gaza e o poder colonial português encontrava sérias dificuldades para se consolidar em Moçambique. Agora «As Areias do Imperador» já contam com o segundo volume intitulado «A Espada e a Azagaia», que nos permite reencontrar os mesmos personagens já depois do posto onde o sargento Germano prestava serviço ter caído sob as hordas inimigas com ele seriamente ferido e privado de alguns dedos, graças aos tiros da sua jovem amante, Imani.
Tendo encontrado refugio na missão do padre Rudolfo em Sana Benene, ele continua a dali enviar relatórios ao superior hierárquico, o tenente Ayres de Ornelas, de quem recebe orientações para se manter ali como espião já que o anfitrião é conhecido pela duplicidade em relação aos portugueses e ao seu inimigo.
Contada a duas vozes - as de Germano e de Imani - a história ganha relevância graças a outros personagens como a feiticeira Bibliana ou o guerreiro Xiperenyane, que se assume como um dos mais tenazes inimigos de Ngungunyane.
A exemplo do primeiro título já não se encontra em Mia Couto o trabalho de recriação da língua, que caracterizava os romances anteriores, mas a intriga complexificou-se, dando uma ideia muito nítida dos jogos de poder então em curso na colónia banhada pelo Oceano Índico.
Estando por esta altura a chegar ao primeiro terço do romance, ele nivela-se pela qualidade do anterior, vindo a ser decerto um dos melhores de quantos em 2016 li.
2. Romance de leitura mais exigente, até porque o ando a descobrir na sua versão francesa, «Bússola» de Mathias Enard é a copiosa sucessão de reflexões e recordações de Franz Ritter durante uma longa noite de insónia no seu apartamento de Viena.
Musicólogo apaixonado pelas civilizações do Oriente ele vai evocando as experiências acumuladas em Istambul, Alepo, Damasco, Palmira ou Teerão tendo sempre como ausência obsessivamente trazida à colação essa Sarah a quem dedica paixão não correspondida, tanto mais que se sente acometido de depressão grave.
Todo o livro comporta uma erudição inesgotável, tendo afirmações dignas de atenção em cada página. Por exemplo, logo de início, ele considera o Danúbio como tratando-se do rio, que liga o catolicismo, com a ortodoxia e o islão. Ou quando defende, mais adiante, que a Europa espoliou os sírios, os iraquianos e os egípcios da sua Antiguidade, ao monopolizar a ciência e a arqueologia como ferramentas de despossessão das populações colonizadas do respetivo património.
Mas Franz recorda, igualmente, a forma como, a exemplo de Liszt e Berlioz  se iniciara no mundo do ópio, em que reconheceu a capacidade de abrir parêntesis nas consciências, assim possibilitando a impressão de abordar a eternidade, vencendo a finitude do ser e a melancolia. Ou como, através de um judeu septuagenário, Ilya Varano, pudera descobrir o mundo dessa cultura nas ruas esconsas de Istambul.
Ainda tendo só lido as primeiras 85 das quase 400 páginas do romance, dá para perceber que esta proposta literária é para ser absorvida com delongas, se não quiser passar ao lado dos seus riquíssimos conteúdos.


Sem comentários: