Às vezes são-nos mais interessantes os personagens dos livros, que andamos a ler do que as pessoas reais com quem nos cruzamos no dia-a-dia e já incapazes de se dissociarem dos estereótipos em que as catalogámos.
No ano em curso tem sido interessante conhecer a personalidade e as vicissitudes por que passa Germano de Melo, sargento do exército português, apanhado pela guerra contra os Vátuas em Moçambique na última década do século XIX. Ele é o protagonista de «A Espada e a Azagaia», o segundo dos títulos de Mia Couto integrado na trilogia «As Areias do Imperador».
Antes de chegar à colónia banhada pelo Índico, ele era um jovem republicano, que se batia tenazmente contra uma monarquia acobardada perante os ingleses de quem lhes acatara o Ultimato e, sobretudo, face aos crescentes movimentos de contestação social contra os quais não viria a encontrar outro antídoto, que não fosse a ditadura de João Franco.
Só neste volume vimos a conhecer o seu traumático passado familiar, porque condicionado por um pai abrutalhado e por uma mãe demasiado timorata perante ele para lhe poder prodigalizar os carinhos, que o marido exigia serem só para ele.
Colocado inicialmente no posto avançado de Nkokolani, que mais não era do que uma cantina para as trocas comerciais entre as populações negras e os colonos, Germano conhecera aí a bela Imani por quem se enamorara. O seu desejo, quase impossível de realizar, seria regressar à metrópole na sua companhia, fazendo-a esposa legítima, mesmo custando isso a ostracização de todos quantos os rodeassem.
Militar consciencioso começara a enviar relatórios para quem o tutelava de uma posição na retaguarda. No segundo romance da trilogia «As Areias do Imperador» esses textos terão como remetente o tenente Ayres de Ornelas, cuja ambição desmedida só encontra paralelo com o ódio visceral, que dedica ao comissário António Enes.
Se no primeiro título da série a própria cidade de Lourenço Marques fora atacada por dois dos lugares-tenentes de Ngungunyane, nesta continuação os exércitos negros estão em perda, tendo sido derrotados na batalha de Magul.
Germano que fugira do seu posto, quando o vira atacado - perdendo alguns dedos das mãos nesse momento infeliz - vai recolher-se à missão de Sana Benene, onde, além de Imani e do respetivo pai, surgem outas figuras até então desconhecidas. O padre Rudolfo, por exemplo, é objeto de desconfiança das autoridades portuguesas, que o creem dúplice em relação aos dois lados em disputa.
Bibliana, a feiticeira, que reivindica ser o “marido” do padre, é uma mulher impressionante cujos poderes mágicos criam misterioso sortilégio à sua volta.
Bianca, a italiana vinda de Lourenço Marques para cobrar dívidas a quem afinal já morreu, perspetiva a hipótese de levar Imani consigo de regresso à grande cidade, ciente do potencial por ela representado enquanto futura meretriz.
Santiago da Mata é o militar que Ornelas enviou para resgatar Germano das perigosas companhias em que se encontra. Boçal na forma como recorre frequentemente ao vernáculo para impor-se perante os outros, também ele se preenche de expetativas quanto à possibilidade de vir a ganhar promoção pelas suas sucessivas escaramuças com os inimigos...
Outros personagens, entretanto aparecidos e desaparecidos, vão surgindo aqui e acolá, como sucede com Katini e Mwanatu, respetivamente o pai e o irmão de Imani.
Quase a chegar ao final da leitura deste volume, acompanho Germano no forçado retorno à retaguarda do exército luso, quando Imani, também ela contra vontade, é levada á presença de Ngungunyane com quem deverá casar … e matar.
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