Sempre gostei muito de gatos, bem mais do que de cães. Mesmo se, entre uns e outros, tenha convivido mais próximo dos segundos, que dos primeiros durante a infância.
A curiosidade pelos felídeos instalou-se a pouco e pouco, à medida que os anos se foram acrescentando à compreensão. Porque se conseguimos adivinhar facilmente o que um cão pensa, isso é completamente impossível de suceder com um gato. Existe neles um mistério, que nunca conseguimos decifrar. Ademais, e como dizem os indianos, adotamos gatos, para termos a ilusão de estarmos a acariciar um tigre.
A decisão de ter um gato por companhia nunca surgiu como intencional cá em casa. Por isso dizemos que não fomos nós que adotámos os que tivemos, mas foram eles a assim decidirem.
Um apareceu-nos num contentor do lixo, abandonado por quem dele se quis livrar, porventura sujeitando-o à morte terrível das lâminas trituradoras do camião, que o esvaziaria. O outro surgiu-nos debaixo da janela a pedir-nos comida com gritos desalmados de cria recém abandonada a quem o desespero agudizava os miaus.
O Cléo morreu-nos há uns meses, quando a veterinária se preparava para enterrar a agulha para o eutanasiar tão espalhados já estavam os tumores por todos os seus órgãos internos. Partilhara connosco os seus dezoito anos de vida e tornara-se num cúmplice, que quase nos fez crer na exceção de lhe adivinharmos os pensamentos por trás do tal mistério, que julgáramos obscuro.
Nesse derradeiro suspiro, e apesar de o sabermos aliviado das silenciosas dores, não pudemos evitar uma lágrima equivalente à sensação de perda, que sabíamos irremediável.
Ficou connosco o Laad, que já anda nos dez anos de idade e tem feitio completamente diferente do antigo parceiro. Deixa-nos os sofás numa lástima, mas é presença certa a nosso lado, quando mudamos de sala e aí nos fixamos.
Compreende-se assim que, na literatura, me sejam particularmente impressionantes as situações, que envolvam martírio para estes animais aparentemente domesticados, mas realmente semisselvagens.
Mishima garantiu-me páginas quase insuportáveis no seu romance sobre o marinheiro que perdera as graças do mar. Nele o protagonista constatava a perversidade do enteado e de outros miúdos da sua idade, que apanhavam um gato e o torturavam até à morte.
Agora reencontro situação equivalente no mais recente romance de Valter Hugo Mãe. Itaro, o artesão, que tem por negócio a venda de leques por si pintados, esmaga com o pé um gatinho ainda jovem, que se lhe aproximara em busca de conforto. Tenta encontrar no seu último sopro de vida algum indício de como será o seu futuro. E esse é um dos problemas que justifica a antipatia de muito gente para com esses bichos: criaram-se tantos preconceitos e superstições a seu respeito, que se estimulou a bestialidade em quem deveria reagir com humana compaixão.
Sem comentários:
Enviar um comentário