Caliban é considerado um dos personagens mais fascinantes de «A Tempestade» de William Shakespeare, sendo objeto de múltiplos estudos e outras tantas interpretações quanto ao que, efetivamente, representa.
Disforme criatura, cuja mãe era a feiticeira Sycorax, Caliban é o primeiro habitante da ilha onde Prospero e Miranda vêm naufragar.
Cobarde, falso e servil, é o exato oposto do bom selvagem tal qual o mundo oitocentista imaginava, ou do doce e poético Ariel.
De início ele não se revela hostil aos recém-chegados, ensinando-lhes onde ficavam as melhores fontes e frutos. Em compensação Prospero ensina-o a falar e a tornar-se menos monstruoso. Mas quando ele tenta violar a rapariga e revoltar-se contra o antigo rei de Nápoles, tendemos a vê-lo como o brutamontes, que nunca se livrará do lado selvagem. Ainda assim não é difícil concluir que a «bondade» inicial de Prospero tem a ideia preconcebida de o tornar mais adaptável aos serviços, que dele pretende.
Caliban fica na situação do colonizado perante o colonizador e tudo quanto este lhe ensinou mais não serviu para que melhor compreendesse as regras da servidão a que o querem sujeitar. Por isso diz a Prospero: “Esta ilha foi-ma dada por Sycorax, minha mãe, e tu roubaste-ma...AH! Quanto sou maldito por ter tal permitido! Porque hoje vejo-me sujeito à tua lei quando, antes, era o meu próprio rei!”.
Significa, pois, que tão só civilizado, Caliban vê-se confrontado com o seu «civilizador» numa crise que verbaliza agressivamente: “Ensinaste-me a falar, e o proveito que disso tiro é saber como vos amaldiçoar. Que a peste negra vos corroa por me terdes ensinado a vossa linguagem!”
A interpretação mais comum de Caliban é a de dele fazer-se o símbolo do povo oprimido pela classe dirigente, mas com progressiva consciência da sua servidão e urgência em dela se livrar. É essa a leitura que Renan faz nos seus “Dramas Filosóficos” em que, ciente do seu estatuto, Caliban fala aos seus semelhantes sobre a luta contra a exploração de que todos são alvos e se torna assim o condutor da revolta vitoriosa contra os mestres. Mas, logo que se vê na condição de líder, apercebe-se de quão bom é governar e logo pactua com a Igreja e o Estado para instalar um simulacro de democracia, em nada semelhante ao poder do povo.
Para se assemelhar ao governo, que derrubou, só lhe falta sonhar em fazer feliz toda a Humanidade.
Renan acaba por dar a Caliban o papel de salvador de Prospero, quando o vê ameaçado pela Inquisição, dizendo-lhe: “O movimento que me fez substituir-te era fatal. Mas não nos custa nada reconhecer que , se somos como somos, somo-lo por si!”.
A revolução de Caliban normaliza-se como não poderia deixar de acontecer, transformando-se no cânone subsequente.
Mas, se como Renan propõe, as revoluções não servem senão para levar ao poder uma nova classe dirigente, bastaria mostrar a transfiguração do povo, ou seja de Caliban, para pressentirmos os seus perigos. Ele é quem faz Revoluções e as destrói, porque entregando as vitórias a outrem nunca acaba por ser ele mesmo vitorioso.
Que não se lhe adivinhe desespero, porque o sentido da História corre a seu favor. Pode ser sucessivamente derrubado, mas levantar-se-á sempre, animado pela ideia de vir a ser, de facto, o dono deste mundo.
1 comentário:
Acabei de ler o Caliban e a Bruxa e vim buscar mais informações sobre esta personagem da peça, obrigada por isso
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