«Nascemos sem escolhermos existir. Deveremos ser obrigados a morrer da mesma maneira? Não será uma das glórias humanas a recusa de aceitar um destino marcado?»
Sou taxativo: o Nobel da Literatura injustamente atribuído a Bob Dylan, caberia com muito maior justiça ao recém octogenário Don DeLillo, cujos dezassete romances publicados, até agora, constituem uma ilustração muito aprofundada sobre as principais idiossincrasias norte-americanas.
No seu título mais recentemente traduzido em português, «Zero K», há uma novidade em relação ao que dele conjeturáramos: se o terror humano primordial parecia ser, até agora, o da morte, DeLillo substituiu-o neste pelo da vida. A Convergência, mistura de projeto científico e comunidade espiritual só acessível a uma elite muito restrita, pretende convencer as pessoas de que existem outras versões de vida preferíveis à conhecida ou à morte. Sobretudo por estarmos a assistir ao fim do mundo tal qual o temos conhecido.
O narrador é Jeffrey Lockhart, que deixara de conviver com o pai aos 13 anos, quando ele abandonara a família, e é agora por ele convocado aos 34 anos, quando a sua vida profissional anda totalmente à deriva. O que Ross tem para lhe propor é a sua imediata sucessão à frente dos negócios bilionários na banca, porque ele pretende acompanhar a atual esposa, Artis Martineau, na passagem para uma unidade especial da Convergência chamada Zero K., cujas portas lhe franqueará.
Jeffrey julga o pai vitimado por uma autêntica lavagem ao cérebro, que o empurrou para as fronteiras da irracionalidade, mas ele concluíra não conseguir sobreviver à morte iminente da jovem mulher, afetada por esclerose múltipla. Por isso prepara-lhe o congelamento criogénico, enquanto ele próprio entrará numa espécie de limbo destinado a rapidamente a acompanhar nesse estado intercalar entre a vida e a morte.
Ross não está, pois, a escolher uma e outra, mas a entrar numa outra versão de vida mais permanente.
Estamos, assim, num tempo em que os deuses deixaram de fazer sentido, nenhum deles sendo capaz de garantir o que a tecnologia promete: uma forma de imortalidade.
Jeff nunca chega a acreditar na viabilidade daquele projeto clandestino, oculto no meio de inacessível deserto, mas não deixa de refletir sobre o significado da morte, as expectativas e as quimeras dos cenários futuristas e a sensação de iminente catástrofe associada ao nosso devir.
Questionados também ficam os dogmas associados às diversas religiões sobre o que possa existir no além, quando a morte já se terá apossado da matéria de que somos feitos. Daí que o tema seja universal e nos dê do autor uma dimensão, que vai muito para além da América de que é um dos maiores vultos literários.
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