Há alturas em que um Homem só tem o nome para defender. E é isso que Daniel Blake sente quando o escreve nas paredes exteriores da agência da segurança social onde se viu, semanas a fio, impossibilitado de vencer os meandros burocráticos impeditivos de receber o subsídio de desemprego ou a pensão de sobrevivência a que deveria ter direito.
A saúde declinou tanto, que os médicos desaconselham o regresso ao seu ofício de carpinteiro. E a persiste a sofrida memória da esposa, cuja ausência lhe suscitou tal vazio e desorientação, que mal sabe como vencer e só lhe agudiza o desespero.
Ao acompanhar-lhe os dias labirínticos entre casa e as instituições que o deveriam apoiar, Daniel Blake torna-se num gémeo de Josef K., o personagem de Kafka igualmente enredado numa teia de que não mais se conseguirá desenvencilhar. A burocracia revela-se a impiedosa arma ao serviço de quem comanda a sociedade para manter submissos quem a pode pôr em causa.
Nessa altura não há como esquecermos os projetos de Mota Soares em privatizar alguns serviços da Segurança Social, quando era ministro do setor no governo de Passos Coelho. É que a agência visitada por Daniel pertence a uma multinacional norte-americana a quem o governo inglês incumbira de lidar com os seus desempregados e reformados. E, como sempre que se entregam serviços a interesses privados, movidos apenas e exclusivamente pelo lucro, o objetivo é o de reduzir despesas para o Estado. Mesmo que o efeito seja o de assassinar lentamente quem deixou de estar em condições de ver explorada a força do seu trabalho.
Mas as vítimas não são só essas: a jovem Kate, mãe solteira de dois filhos, igualmente enredada nos mesmos labirintos de quem lhe nega os direitos a subsídios indispensáveis para a sobrevivência mais básica, acaba por se render à prostituição como modo de assegurar comida no prato para a família.
Ao ver «Eu, Daniel Blake» percebe-se bem porque Ken Loach infletiu na decisão de, chegado à condição de octogenário, abandonar a realização de filmes: é que a realidade social do seu país, e da Europa em geral, é demasiado grave para se sentir alheado de a tentar mudar à medida das suas capacidades.
Em tempos idos poderíamos considerar excessivo o recurso às emoções para viabilizar um discurso cinematográfico, mas chegámos a uma tal manipulação das consciências por quem as quer vergar ao conformismo de aceitar as coisas tais quais estão, que Loach reivindica o direito a recorrer ao mesmo discurso primário com que se as aliena virando-o em sentido inverso.
Se é a solução para espevitar os oprimidos a saírem da sua inércia e se movimentarem no sentido da expressão determinada da sua indignação, pois que se a utilize. Muito mais do que nos anos 60 e 70, o cinema militante volta a ter carácter de urgência, porque a luta de classes apenas se atenuou por incúria das esquerdas e da sábia administração de distrações pelas direitas, mas continua a justificar intensa agudização.
No fundo a praia continua a existir por debaixo das pedras da calçada e já temos experiência bastante para concluir que os impossíveis são exequíveis, desde que os reivindiquemos...
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