Todos os meses a Associação Gandaia da Costa da Caparica organiza sessões com escritores convidados a virem apresentar as suas obras e a falarem da sua atividade criativa. Desta feita coube a vez a Ana Margarida de Carvalho, cuja obra tem exprimido convincente maturidade a par de inequívoco talento.
Recém-objeto de um indecoroso saneamento da revista «Visão», que confirma como o universo das publicações e televisões pertencentes a Francisco Pinto Balsemão tem verdadeira aversão aos Jornalistas com maiúscula, (e infelizmente imitado pelos concorrentes), Ana Margarida de Carvalho começou por descrever as circunstâncias em que tal ocorreu, suscitando justa indignação nas redes sociais.
Vinte e quatro anos de profissão foram assim interrompidos por quem pretende escribas obedientes, mal pagos e sem vínculo digno desse nome ao empregador. Para quem ainda não percebeu quanto importa reverter as alterações à lei do Trabalho promovidas pelo governo anterior, este exemplo concreto justifica a urgência em impedir que outros se lhe sigam.
Faz, pois, sentido a interpretação de António Vitorino a respeito das presentes divergências dos parceiros sociais em torno do salário mínimo, considerado por uns como insuficiente e exagerado pelos do campo contrário. O que verdadeiramente dará substância ao combate político nesse suposto Conselho de Concertação Social é a discussão dessa legislação, que privou quem trabalha dos seus mais elementares direitos e possibilitou aos patrões a facilitação do despedimento sem justificação nem justas indemnizações.
Mas, passando depois para os livros, abordaram-se os títulos até agora publicados pela autora.
«Que Importa a Fúria do Mar» é uma história de amor, passada em dois tempos diferentes, havendo num deles um Joaquim, que se envolvera na revolta da Marinha Grande em 1934 e é, dois anos depois, enviado para o Tarrafal, quando para lá seguiu a primeira leva de prisioneiros políticos condenados a tão inóspito cárcere no meio do mar. E há Eugénia, a fútil repórter televisiva, pouco a pouco seduzida pela história das cartas de amor atiradas do comboio por quem se sabe condenado a não regressar.
Já «Não se pode morar nos olhos de um gato», publicado este ano, remete para o século XIX, quando prosseguia, mesmo que com maior recato, o tráfico de escravos de África para o Brasil. O naufrágio de um desses navios tumbeiros faz coexistir na mesma praia senhores e escravos, padres e crianças, todos eles a replicarem as idiossincrasias do seu passado e a serem desafiados para se colocarem na pele uns dos outros.
Ainda sobrou oportunidade para falar da excelente ideia, que estimulou «A Arca do É» e fundamentada na necessidade de serem preservados não só os animais, mas as plantas e demais vegetais.
Como as palavras são como as cerejas seguiram-se múltiplas perguntas e respostas, que tanto se orientaram para a existência ou não de Deus, para a exequibilidade da Literatura na época da cultura digital ou a representação de personagens literários na estatuária urbana. A todos esses assuntos e a outros, que seria supérfluo aqui enumerar, a autora correspondeu com as suas opiniões desassombradas.
É uma das grandes conclusões a retirar dos nossos escritores: quase todos eles mostram uma admirável generosidade para partilharem com os leitores as suas ânsias e inquietações. Daí que estas sessões sejam humanamente de uma riqueza incomensurável...
Sem comentários:
Enviar um comentário