O que é verdadeiro ou falso numa identidade? O que pode ser credível no relato memorialista de um assumido mentiroso?
São questões pertinentes, quando se leem as histórias - ou estórias? - de David Cornwell, dissociado do pseudónimo por que é bem mais conhecido, John Le Carré.
E, no entanto, podemos apossar-nos de algumas chaves pertinentes sobre a futura vocação do autor. Que profissão exige um melhor domínio do uso da mentira, que a de espião?
Induzir nos alvos a ideia de se ser outro, que não quem se é, constitui o objetivo primordial de quem lhe quer assestar dano certeiro.
Para David tudo terá começado na infância quando se viu dissociado da mãe - cuja ausência voluntária ainda lhe motiva indizível dor - e educado por um progenitor, que era tudo menos um cidadão exemplar. Por isso, e em função dos sucessos ou insucessos nos seus singulares negócios, ora viviam no luxo, ora na maior das misérias.
Durante a Segunda Guerra, quando todos os colegas da escola se orgulhavam dos progenitores, entretanto mobilizados para a honrosa defesa da pátria, ele via-se coagido a inventar uma identidade esdrúxula, mas igualmente heroica para esse Ron, que sabia não passar de um vigarista.
Não admira que, chegado à idade adulta, visse a espionagem como modo de vida. Significava o corolário lógico da contínua intenção de se disfarçar sob outra identidade, que não a desse David, que execrava.
Os anos passados para lá da Cortina de Ferro comportavam-lhe a vantagem de lhe facultarem esse outro ser, dotado de conhecimentos e expedientes tão úteis para a futura atividade de escritor. Que viu como outro exercício apelativo do uso da mentira, porque disfarçar a realidade a coberto de personagens ficcionais não deixa de ser outra via para explorar o espartilho entre a vontade de se revelar e a habilidade em fazê-lo, escondendo-se.
Agora que a idade o aproxima da definitiva resolução dessa dialética de se ser ou não ser, John pode voltar a ser David e juntar um e outro numa única e já indissociável afinidade.
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