Se a condição LGBT não era fácil de ser vivida nos tempos soviéticos, a passagem para a «Democracia» putiniana não trouxe qualquer melhoria para os russos e russas afetivamente ligados a parceiros do mesmo sexo. Até pelo contrário só agravou o que já era um quotidiano de medo e de crispação.
Se alguém alimentara a ilusão dos benefícios de um cosmopolitismo, fomentador de uma maior tolerância a nível das questões fraturantes, bem depressa se terá desencantado com a crescente recuperação de estatuto da Igreja Ortodoxa, que deixou de ser considerada o ópio dos povos, muito merecidamente qualificada por Lenine, que a tratou de quase ilegalizar logo após a Revolução Bolchevique. Ademais, e como em todas as latitudes onde os canalhas se escondem por trás do manto demagógico da xenofobia nacionalista, ser diferente implica sérios riscos de vida, com a prisão a tornar-se consequência natural de se expressar a indignação contra as mais legítimas liberdades.
É tudo isso o que se constata neste documentário de Sakharnov, ao acompanharmos alguns meses na vida de Olya, desde a sua assolapada paixão por Galiya e o projeto de constituírem família com filhos e tudo, até ao desencanto do fim dessa relação, seguido do redentor renascer das cinzas com a opção pelo regresso ao estudo na vertente das Artes. Pelo meio também se testemunham as manifestações contra o agravamento da legislação homofóbica, quase sempre caracterizadas por agressões da extrema-direita e das forças policiais.
O problema neste tipo de situação é sabermos bem como toda a contestação a Putin se torna ambígua nos apoios, que se garantem: normalmente os revoltosos de causas legítimas tornam-se ferramentas inconscientes de agendas geopolíticas mais do que suspeitas. Vimos isso na Ucrânia, onde muitos ingénuos que acamparam na Praça Maidan não perceberam como estavam a ser manipulados por quem tem por objetivo estender as fronteiras da NATO um pouco mais para Leste. E por isso mesmo acabaram por não enjeitar a colaboração ativa dos nazifascistas oriundos das organizações, que secundaram os exércitos alemães durante a Segunda Guerra Mundial.
A análise da presente situação russa não se pode formatar pelo maniqueísmo com que a vemos expressada por Olya. Como mestre de xadrez de um jogo, que está muito para além do que se vê no tabuleiro, Putin, a exemplo dos que estimulam os ativistas dos movimentos LGBT ou as Pussy Riots, usa a seu modo a Igreja Ortodoxa e os movimentos nacionalistas para operar uma inflexão no tipo de caos instalado no período de Ieltsin e que os inimigos tentam agudizar com esta prolongada manipulação do mercado do petróleo. Quem inicia os discursos do Estado da Nação perante o Congresso norte-americano não tem pejo em criar artificialmente as crises nas matérias-primas conducentes a crises económicas, sociais e políticas em países como a Rússia ou a Venezuela.
Daí que, por tudo isso, o filme de Sakharnov presta-se a leituras contraditórias: por um lado como não reconhecer a Olya o direito de viver com quem melhor corresponder aos seus afetos, mas, por outro, como não tecer sérias suspeitas sobre quem está a financiar as ações militantes destinadas a precarizar os equilíbrios do regime?
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