Uma das lendas mais consolidadas no mundo das artes é a da rutura entre Cézanne e Zola em 1886 na sequência da publicação por este último de «A Obra», que retrataria de forma pouco lisonjeira o seu amigo de infância.
Essa história está tão divulgada que, ainda há poucos meses, justificou um filme estreado em França e que tinha precisamente por tema as circunstâncias de tal corte.
Ora o próprio Zola foi muito claro quando confessou ter procurado integrar na personalidade de Lantier os quatro tipos humanos mais influenciados hereditariamente pelo que se pode reconhecer na nossa espécie: o assassino, a prostituta, o padre e o artista. Não havia nele qualquer intenção de colar a tal personagem uma específica referência biográfica.
A publicação «Lettres Croisés», que reúne a correspondência dos dois artistas entre 1858 e 1887 permite desmistificar os motivos do afastamento verificado após essa última data.
A amizade entre o futuro escritor e o futuro pintor iniciara-se quando ambos estudavam no liceu de Aix em 1853 ou 1854, e perduraria durante mais de trinta e cinco anos, apesar de irregular no condicionamento de passarem grandes temporadas sem se verem. A escrita funcionava, então, como paliativo apesar da conhecida preguiça de Cézanne em exprimir-se pela palavra. Mas as afinidades reconhecidas nessa juventude, prolongar-se-iam com o interesse pelos mesmos temas e tertúlias artísticas, e uma recusa comum ao academismo e às convenções.
Esta edição constitui a primeira tentativa de agregar as 115 cartas, que sobreviveram às vicissitudes do tempo, e cuja importância pouco deve às alusões sobre as respetivas vidas familiares ou sociais, porque representam a ilustração do pensamento de ambos quanto aos motivos e às estratégias criativas, que andavam a ensaiar.
A explicação mais plausível para Cézanne não voltar a contactar Zola depois da carta de 4 de abril de 1886, é a de um desejo subconsciente de impossibilitar a substituição do pai verdadeiro, recentemente desaparecido, por um progenitor de substituição não menos terrível e suscitador de angústias, apesar da inequívoca generosidade. É que, por mais de uma vez, o escritor vira-se ripostado sem cerimónias por um artista com pouca capacidade de aceitação de outras perspetivas, que não as suas. Daí que Zola tenha sempre presente os cuidados a investir no que lhe escreve para evitar ofendê-lo.
E, no entanto, as conceções de ambos, em suportes diferentes - num a escrita, no outro a tela! - equivalem-se amiúde em idêntica paixão pelo real e sua representação. Uma das limitações deste livro é o facto de as cartas remeterem para conversas por eles tidas presencialmente e que complementavam com os textos, que depois trocavam.
Poderíamos, por exemplo, atribuir a Cézanne o texto efetivamente assinado por Zola no «Figaro» em dezembro de 1892: “Quando evoco os objetos que vi, revejo-os tal qual são nas suas linhas, formas, cores ou sons. Faço-lhes uma materialização à revelia da sua presença. A luz que os iluminava continua a impressionar-me, o odor a sufocar-me. Mas os detalhes são tantos, que me impedem de ter uma visão de conjunto. Daí que necessite de algum tempo para os voltar a recapturar.”
A harmonia é outro conceito, que está nos textos de ambos, embora pertença a Cézanne esta afirmação: “ Pintar não significa copiar servilmente o objeto: é captar uma harmonia entre inúmeras relações. É transpô-las numa gama pessoal, desenvolvendo-as numa lógica nova e original.”.
Atendamos agora a um exemplo do que, a tal propósito, escrevia Zola: “utilizo as harmonias ao inverter a ordem das palavras nas frases, conseguindo um efeito sonoro do mudo significado das coisas.(…) A verdade é sentir-me um poeta com as obras a construírem-se como se fossem grandes sinfonias musicais.”
Apesar desse distanciamento, que hoje se rejeita ter-se tratado de uma rutura - quantos de nós nos afastámos de antigos amigos aos quais já nada de novo nos sobrava para dizer? - pode-se concluir pela cumplicidade tácita do que ambos criaram depois de 1887. Porque, quer um, quer outro, poderiam ter subscrito o que Zola escreveu sobre o conceito da composição: “Notaram como construo os meus livros? (…) Eles são labirintos onde encontram, se os olharem de perto, os vestíbulos e os santuários, os espaços abertos e os que são secretos, os corredores sombrios e as salas iluminadas. São monumentos, ou seja, numa só palavra, são composições.”
O que «Lettres Croisés» aclara é uma fraternidade artística baseado numa visão contrastada, contraditória e dialética do mundo natural e humano.
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