Nos últimos tempos têm surgido obras literárias ou cinematográficas dedicadas a Dmitri Shostakovich, que é um dos meus compositores preferidos. Como o foi de Estaline, embora essas novas abordagens sejam quase todas orientadas para empolar as divergências com o regime soviético, por quem foi, ora celebrado, ora visto com desconfiança.
Estou, por exemplo, curioso quanto à leitura do romance sobre ele escrito pelo inglês Julian Barnes, cuja prosa muito aprecio e que espero ver dotada da sua típica mordacidade, e da sempre constatada objetividade. Por isso aguardo que se trate de obra equilibrada, nem diabolizando os que sempre são tidos como maus, nem santificando os que nos querem dar invariavelmente como os bons da fita.
Uma das suas obras, que mais me agradam é a 7ª Sinfonia, por ele composta durante o cerco de Leninegrado e cujos acordes iniciais do 1º andamento tornaram-se mundialmente conhecidos nos anos seguintes como banda sonora de uma vitória quase anunciada. E, no entanto, esse início, que quase lembra a toada repetitiva do «Bolero» de Ravel, significara para o autor o som ameaçador dos exércitos nazis a avançarem pelas estepes russas até estacarem em frente à grande metrópole do Báltico,
Inteligentemente, Shostakovitch escolhera para esse arranque da obra, uma outra da autoria de Franz Lehar, que Hitler adorava: a opereta «A Viúva Alegre». Era nela que surgia a ária “Da geh ich zu Maxim”, que compusera na sequência de um calote à celebre sala vienense em noite de festa com os amigos. O acordo entre o boémio e o desconfiado dono do estabelecimento significara a obrigatoriedade de compor uma peça musical, que o tornasse mundialmente famoso. O que foi o caso, porque essa ária passou a ser uma das mais famosas do bem sucedido compositor.
Mas sobre essa 7ª Sinfonia de Shostakovich ainda sobra a história de um Bela Bartok farto de lhe ouvir o primeiro andamento em Nova Iorque, onde se refugiara durante a Guerra e que a decidiu satirizar no seu Concerto para Orquestra em que pôs os trombones e a percussão a mimetizar, com disfarçadas alterações, a composição de Shostakovich.
Estas histórias recolhia-as de um dos excelentes programas, que António Cartaxo tinha na RDP, onde nos demonstrava que o mundo da Música Erudita estava prenhe de saborosas vicissitudes. Quanta falta nos faz essa presença na nossa rádio pública, onde também importa reverter os saneamentos nela operados pelos quatro anos de ação passista.
Uma, que quase chega ao nível da anedota, é a sucedida com Fernando Lopes Graça, que conheceu inesperado desafogo económico, quando publicou nos anos 30 o livro «Caça aos Coelhos. Último Tiro».
Na época ele vivia muito pobremente num quarto de Campo de Ourique, dada a marginalização a que o sujeitavam as suas ideias políticas: estava impedido de dar aulas no Conservatório apesar de ser, decerto, o pedagogo mais habilitado para as orientar.
Julgando tratar-se de obra dedicada ao aprimoramento do tiro ao alvo nas coutadas, os caçadores apressaram-se a adquiri-la, constatando depois o quanto ela nada tinha a ver com o assunto da sua preferência.
Se quisermos colecionar histórias sobre equívocos singulares esta merecerá integrar tal acervo.
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