Pode o jogging motivar a reflexão filosófica num ensaio sobre a condição humana e a sua ligação com tudo quanto a condiciona? Foi o desafio a que se propôs o filósofo Guillaume Le Blanc, ele próprio praticante desse desporto, e autor de «Courir».
Uma das questões levantadas pelo ensaio é o do papel da filosofia nos nossos dias: em vez de a perspetivar distanciada do mundo real, como Descartes propunha com a sua dúvida metódica, fá-la assumir-se bem dentro dele. E, assim, corresponder à interação da realidade com o indivíduo.
Aquele que corre personifica a metáfora elucidativa sobre a ligação ao mundo sem dele se assenhorar: o corredor limita-se a passar e é essa a forma de se ligar ao mundo, às paisagens, aos odores ou às cores. E de, com todos esses elementos, estabelecer uma relação muito próxima.
O corpo que corre não é o de tipo aristocrático, que tinha toda a disponibilidade para se consagrar aos estudos e, depois, exercer as funções de cidadão na Ágora.
O corredor começou por ocupar um espaço que, inicialmente, não estava destinado à corrida. A cidade foi concebida para os automóveis e, quanto muito, para os peões.
Ora, as corridas organizadas - maratonas ou meias-maratonas - obrigam a que, enquanto decorrem, os carros não transitem.
A cidade vê-se subitamente reorganizada pela corrida, que se transforma numa espécie de alucinação coletiva. Uma prova que todos vêm disputar sem pensarem na vitória, mas para sentirem no corpo o que pressentem nos que correm à sua volta.
Ao mesmo tempo está-se sozinho e com os outros. É isso mesmo que interessa a quem participa nessas corridas: a experiência de se integrar num rebanho.
Vivemos, hoje em dia, numa sociedade de grande mobilidade. Existe um padrão de velocidade, de desempenho, a que todos se tentam subordinar. Um bom trabalhador é o que responde na hora aos mails ou que se desloca rapidamente.
Seríamos, por isso, tentados a ver no corredor um sintoma das nossas sociedades. Correr seria a demonstração de conformidade com a normalidade por equivaler ao ajuste em relação à velocidade do mundo.
É certo que existe pressão social na corrida. Veem-se grandes empresas a estimular os seus quadros mais eficientes a participarem nas maratonas. Mas Le Blanc considera que o praticante da corrida é bastante mais do que o sintoma da época em que vive. Porque há também a experiência do momento em que se corre. Aquele em que o esforço vai sendo rateado de acordo com as energias, que se sentem. Ora, são essas reaferições contínuas a justificarem o interesse. Porque transformam o corredor no verdadeiro decisor sobre si mesmo.
E, por muito que chegue a ultrapassar os 12 quilómetros por hora está aquém da velocidade dos carros, que por ele passam. E que, esses sim, constituem o decalque deste mundo excessiva mobilidade.
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