Se Deus teve a oportunidade decisiva de me bafejar com o mistério da Fé, ela aconteceu no verão de 1990, quando ascendi pela primeira vez às alturas da Catedral da Sagrada Família.
Estava um calor de fritar ananases e o monumento quase não tinha turistas. Não só ele: no Paseo de Gracia, nem junto à Casa Batló, nem junto à La Pedrera, sobravam corajosos capazes de saírem do conforto dos ares condicionados dos hotéis para arriscarem o sufoco nas construções de Gaudi.
Sozinho em Barcelona - já que, nessa manhã, despedira-me da minha mulher e da minha filha, que tinham apanhado avião para Lisboa -, subi as Ramblas e a larga avenida, que as prosseguia até ter a Catedral inacabada à minha direita.
O que encontrei nas escadarias em espiral, no acesso às torres, foi a ausência de quem quer que fosse. E assim aconteceria no cima abaixo, que me levou à ascensão de cada uma delas para colher a perspetiva da cidade nos seus 360º.
O calor e o surpreendente silêncio fizeram-me sentir o tempo parado, com o leve vislumbre de uma “porta” para a desconhecida transcendência. Que nada quis comigo, o irredutível materialista!
A sensação foi inesquecível … e irrepetível! Quando, alguns anos depois, ali voltámos e enfrentámos em família a tentativa de a recuperar, já não era possível. As filas pelas mesmas escadas avançavam lentamente com os inefáveis japoneses a pararem a cada lanço para tirarem fotografias. E a sujidade era impressionante, com restos de junkie food e copos de coca-cola a acumularem-se nos sítios mais esconsos.
Foi com essas reminiscências contraditórias, que me dispus a ver o documentário, que Danielle Proskar agora rodou sobre o monumento, que figura no Património mundial da Unesco.
Lembra-se assim o estranho acidente de elétrico, que custou a vida ao arquiteto encarregado de construir a Catedral por encomenda das autoridades religiosas de Barcelona. Estava-se em 1926 e a obra de Antpni Gaudi estava muito longe de concluída: ainda hoje o não está!
Ele tomara conta do estaleiro de construção em 1883, depois de impor um projeto, que nada tinha de semelhante com o dos seus predecessores. A sua abordagem era modernista e naturalista, influenciada pela Arte Nova, com motivos decorativos vegetais, mas também rica em símbolos litúrgicos e bíblicos.
A ambição de Gaudi era desmesurada: a Basílica da Santa Família deveria ser a maior de toda a Cristandade. Composta por cinco naves e dezoito torres - a mais alta das quais com 170 metros - desafia as leis da gravidade.
Para evitar que o projeto fosse questionado, Gaudi iniciou a construção dos elementos exteriores antes da parte central da construção e recorreu a soluções técnicas revolucionárias: arcos parabólicos e abóbodas hiperbólicas.
Os cálculos de todo o conjunto arquitetónico revelaram-se muito sofisticados com proporções definidas a partir de um quadrado com 7,5 metros de lado e com todas as demais medições a serem múltiplas daquela.
Porque não deixou planos de conjunto para toda a obra, Gaudi legou dificuldades titanescas aos que lhe sucederam na obra. Tanto mais que o seu ateliê foi consumido pelo fogo durante a Guerra Civil, desaparecendo as maquetes, que poderiam constituir uma possível resposta...
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