Vai andando sobre as águas
como um jesus acrobata,
empenhado, um cidadão.
A ele são umas tábuas
a sustentar-lhe a bravata
e a improvisar-lhe um chão.
Dão-lhe pé, dissimuladas,
já toda a gente as viu;
nada que o embarace —
as ilusões são furadas,
mas se ainda não caiu
pode ser que se ultrapasse.
Tendo concebido o logro,
acredita num milagre —
não lhe importa o fim do estrado,
pois esquecido da manha
enfrenta-o como quem sonha,
de tudo desobrigado.
O que aos outros traz contentes,
e lhes arrebata um bravo!,
não é o truque é o tralho:
escorrega, bate com os dentes —
fulminado num esgar parvo,
fica feito num frangalho.
Tão lindo este cenário
negando ao homem a fé,
tão giro o fugir-lhe o pé,
o aleijar-se a sério —
tão humano este minuto
de humilhação do aflito.
Gabou-lhe a aventura o povo;
não sendo nada de novo,
é sempre entusiasmante
ver alguém espatifar-se,
ser testemunha do instante
e comungar da catarse.
Vai andando sobre as águas
como um jesus desastrado,
derrotado, um cidadão.
Vai cuspindo suas mágoas
como um bêbado chanfrado,
assustado, um cidadão.
Vai suspirando por tréguas
como um cavalo cansado,
acabado, um cidadão —
empenhado cidadão.
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