O Camboja evoca-nos imediatamente uma das maiores tragédias da segunda metade do século XX: a do genocídio perpetrado pelo regime psicopata de Pol Pot e que tão má reputação trouxe à ideologia sob a qual falsamente se fundamentava.
Mas os cambojanos de hoje, se estão a salvo de sanguinários ditadores, não se livram de sofrer com um dos regimes, que melhor ilustra o quão selvagem pode ser o regime capitalista. Porque promovendo uma obscena desigualdade entre uma minoria plutocrata e a grande maioria da população, condenada à miséria e ao analfabetismo, cria as condições ideais para a proliferação de redes de tráfico humano, que fornecem escravos para os países vizinhos: as raparigas para os trabalhos domésticos e para a prostituição, os rapazes para fábricas e quintas onde se desrespeitam os mais elementares direitos de quem trabalha. Nomeadamente o de receber um salário por diminuto que seja.
O documentário «Os que trazem as tempestades» foi realizado por Guillaume Suon em 2013 e ilustra, entre vários testemunhos, três perspetivas do mesmo fenómeno: o do traficante, o do recrutador e o da vítima desse miserável esclavagismo.
Pou Houy é um crápula sem ponta de escrúpulo. Mesmo dizendo-se católico devoto, estende a mão aos mais desfavorecidos para melhor os escravizar.
Ele é um dos responsáveis por que, segundo a ONU, mais de duzentos mil cambojanos tenham sido vendidos para a Malásia ou para a Tailândia.
Rindo-se para a câmara, revela o tipo de vítima por ele escolhida: jovens das zonas mais distantes da capital, sem meios de subsistência nem escolaridade. Fragilizados pela pobreza e pela ignorância são os mais facilmente deslumbrados com a expetativa de irem receber fortunas num sítio desconhecido, que não adivinham equivaler-se ao próprio inferno.
Aya foi uma das suas vítimas. Durante dois anos esteve ausente da aldeia natal onde agora é vista com desprezo. A mãe envergonha-se dela e só o pai mostra piedade por quanto ela sofreu. Trabalho forçado, agressões, violações. E um filho, que trouxe consigo e por quem, enquanto o acaricia, profere estas palavras terríveis: “quando penso no homem que me violou, digo para mim mesma: ‘Como nada posso fazer contra ele, vingo-me no seu filho.’ Foi para isso que o conservei: para o encher de pancada.” É a terrível constatação em como as frustrações dos mais fracos exercem-se sobre os que ainda menos se podem defender, ou seja as crianças.
Quer sobre os traficantes, quer sobre os recrutadores, que percorrem as regiões mais pobres para iludir novas vítimas, Aya conclui: “Não têm piedade nenhuma e só agem por dinheiro”.
Ela e os que já os conhecem por conta dos sofrimentos por que passaram, designam-nos por «Mey Kechol”, ou seja os que trazem as tempestades de lágrimas e de sofrimentos.
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