Chegados ao ano de 1116, já vamos encontrar Bonifácio bastante mais amadurecido do que o encontráramos como noviço do mosteiro de Pena Ventosa três anos antes. E se iniciara o afã de cronista com o maior dos entusiasmos, ele começa agora a esmorecer: “Os dias repetem-se e eu duvido de mim mesmo e da função que me dei: escrever uns Anais da cidade. Às vezes penso desistir e não percebo que causa me obriga ainda uma vez a persistir na obra. Pergunto-me se faz sentido, e para quem faria sentido. Para quem escrevo? Para mim mesmo: é quanto concluo.” (pág. 171)
É fácil, pois, concluir que a exemplo de muitos outros romances históricos, o que serviu de estreia a Pedro Eiras, serve-se do passado para abordar as mais pertinentes questões do presente. . A questão do objetivo da escrita contribui para conferir ao romance a sua intemporalidade. E já vimos que, além da questão de acreditar ou não em Deus, «Anais de Pena Ventosa» aborda de passagem a questão dos «maîtres à penser» escolhidos normalmente pelos adolescentes para acelerarem o seu processo de identificação consigo mesmos. No caso de Bonifácio esse inspirador intelectual é Dom Hilário: “Por mais que esteja com ele, nunca me habituo a este monge tão singular, que vive em comunidade e contudo é conhecido por todos na Cividade, mergulha sem hesitação entre os mais pobres e parece trazer, senão consolo verdadeiro, ao menos natural simpatia e indesmentível e bem estar”. (pág. 179)
É por Dom Hilário que Bonifácio fica a conhecer o censurável passado do bispo, Dom Hugo: quando era arcediago em Compostela, participara a mando de Dom Diogo Gelmires no roubo das relíquias existentes nas igrejas de Braga.
É também por Dom Hilário, que Bonifácio ganha a amizade do Herbanário, cuja sapiência admira mesmo sabendo-o ateu.
Passa mais um ano e, em 1117, o Vaticano manda um enviado seu para analisar localmente a justeza das pretensões dos diversos bispos da Península: “O santo Papa Pascoal II considerou proveitoso que um legado estudasse na Ibéria, nas bibliotecas mais autorizadas, e descobrisse quais territórios pertencem a cada igreja, e mais a qual se pertence e deve obedecer o queixoso bispo Dom Gonçalo de Coimbra, e sempre obedecerá. A propósito: concluímos, depois de estudarmos muito, que Coimbra deve obedecer a Mérida, e portanto, indiretamente, ao legado apostólico de Toledo, Dom Bernardo, mas de forma alguma a Braga, como tem nocivamente acontecido.(pág. 222)
Às vezes Bernardo consegue abstrair-se dessas intrigas clericais e encontrar momentos de grata serenidade: “Domingo. Dia de folguedo. Dia para viver, sem obrar, de manhã à noite, de o mundo ter vivido sem nós-assim um vazio que aparece, uma folgança, um não-pensar, um quase não-ser. Quando muito, olhar ao longe uma paisagem sem movimento, águas de um rio, e basta. Ouvir distantes ruídos, insetos, o mover dos ares, sem conseguir identificar a natura e a proveniência dos sons.” (pág. 239)
O romance também vai evoluindo para a lógica da iniciação do seu protagonista para a vida de adulto...
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