No texto anterior víramos que o romance de Pedro Eiras começava no ano de 1113, quando um noviço do Mosteiro de Pena Ventosa manifesta a intenção de escrever as impressões dos seus dias em Portucale, a futura cidade do Porto.
Na página 26 ele descreve o sítio onde vive: “O mosteiro é sobretudo um equilíbrio de formas, proporção de linhas e impressões, como paisagem de montanhas que não vem do acaso cego, onde se diria estar cada elemento no perfeito local e no perfeito momento, e receamos então que todo o universo se desvaneça se este riacho corresse um pouco mais ao lado, ou aquele cômoro fosse mais escarpado, ou estas nuvens não cobrissem a terra.”.
E, por essa altura, também chega o novo bispo, Dom Hugo, decidido a engrandecer a importância do clero naquela região não muito distante de onde cristãos e mouros pelejam pela posse da antiga Lusitânia.
“Quando Dom Hugo abordou Portucale, vindo da Galécia, de Compostela, num barco que entrou o Douro adentro, era já um de nós, ou assim todos pensaram, e por assim pensarem assim viram.” (pág. 30)
Uma das primeiras intenções do recém chegado é a de iniciar a construção de uma nova catedral, recorrendo para tal ao trabalho gratuito dos crentes. E é em vão que o tentam dissuadir com argumentos mais do que pertinentes: “Os homens desta terra passam fome e nem deixam de trabalhar todo o ano para comer. A terra não é boa, nem extensa, ainda pouco foi desbravada Os anos são duros. Portucale, tereis visto, é sítio pobre e mui carente de bens, a começar pelo pão.”(pág. 62)
O projeto de Dom Hugo irá mesmo por diante, já que a sua ambição não se coadunará com os condicionalismos apresentados pelos seus subordinados.
A primeira vez que Bonifácio lhe chama a atenção é para que decida se deverá ou não ter acesso à biblioteca conforme recomenda Dom Hilário. Este seu protetor justifica assim a sua opinião: “(…) talvez não fosse de negar ao Bonifácio a oportunidade de se instruir. A proibição das leituras pode ser mais perniciosa do que a leitura em que ele confunda as regras sãs, porque a ignorância do espírito é mais nociva do que o luxo do conhecimento na alma”. (pág. 55)
Ganhando permissão para frequentar aquele espaço onde se conservam livros religiosos e outros, profanos, que suscitam apreensões nalguns dos monges, Bonifácio irá conhecer uma progressiva evolução intelectual até concluir pela necessidade de questionar todas as verdades absolutas.
Mas, nestas páginas iniciais, Bonifácio ainda não se prende com os mistérios do espírito, preferindo a descrição do que vê passar-se à sua volta: “pouco de importante acontece na cidade de Portucale. Os dias cristalizaram num sossego certo que só muito de quando em quando alguém interrompe, partindo ou chegando, nascendo ou morrendo, seja um que traz produtos de outra terra seja outro que a Justiça persegue, seja enfim um escândalo sem importância mas teimosamente reavivado.” (pág. 57)
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