Ateu convicto tanto rejeito a existência de um qualquer deus, como de qualquer tipo de transcendência capaz de predestinar acontecimentos da vida de quem quer que seja.
Muito embora haja «cientistas» capazes de afiançarem justificações para se considerarem prosélitos de uma qualquer igreja, o próprio facto de prescindirem de quanto a observação e as repetidas experiências lhes demonstram para desmerecerem dessa condição. Não admira que um dos mais brilhantes nomes da ciência, Stephen Hawking, também se tenha declarado ateu convicto ainda não há muito tempo.
Em definitivo, ciência e religião não são compatíveis, cabendo à primeira explicar a realidade dos factos e à segunda a de servir de ópio à ignorância dos povos.
Não cuidem os explorados de se organizar e defender os seus direitos e logo terão a potentíssima coligação do capital e da igreja a incentivá-los a aceitar a tese de não existirem alternativas ao que lhes frustra o direito à felicidade. No futuro será crível que o gesto de rutura de Alexis Tsipras em mudar os protocolos de assumpção do poder - livrando-os dos pressupostos religiosos - seja repetido com maior frequência (e menos escândalo para as piedosas almas de alguns!).
Na mesma lógica nego qualquer atributo científico a outros fenómenos relacionados com a mera crendice: a astrologia, a homeopatia ou, no caso deste documentário, a cartomancia.
Coloca-se, então, a questão: para quê perder tempo com uma investigação sobre o tarot?
Faria todo o sentido na lógica de compreender quem nele crê e no que isso pode afetar as respetivas vidas. Ou, em alternativa, como surgiu essa suposta interpretação dos destinos humanos em função do manuseio de umas quantas cartas. Mas o documentário de Truffault e de Poncet vai tomar outra via: a de enquadrar a criação do tarot na Europa do século XV e como ele poderia contribuir para a expansão do conhecimento.
O filme explora a história secreta dessas cartas na Florença dos Médici demonstrando como esse jogo nada tem a ver com as suas supostas virtudes premonitórias mas corresponde à síntese do pensamento filosófico de Marsílio Ficino, um filósofo florentino que viveu entre 1433 e 1499 e foi um dos grandes mestres da primeira Renascença italiana.
Nessa época os filósofos e os artistas descobriram os textos dos filósofos da Antiguidade grega com cuja inspiração Come de Médicis fundou a sua Academia neoplatónica. O para a dirigir foi Marsílio Ficino, um filósofo entusiasmado com a astrologia e com as obras de Platão que se empenhara em traduzir.
Filho de um reputado médico da cidade, Marsílio propôs-se a criar uma síntese entre o cristianismo e as teologias antigas. Foi, pois, para conseguir que os seus alunos melhor decorassem os princípios fundamentais de tais ensinamentos, que criou um baralho com vinte e duas cartas especiais. Erroneamente viria a ser conhecido como o «tarot de Marselha», porque foi nesse porto francês, que ganhou particular destaque nos séculos XVIII e XIX.
A incrível história deste jogo pedagógico não se fica por ai. Ficino lançou o desafio a vários artistas seus conhecidos para que desenhassem as vinte e duas cartas. Foi assim que Sandro Botticelli se encarregou da carta relativa à Temperança, que quase é idêntica a um fresco do pintor descoberta recentemente nas caves de um castelo húngaro.
Mas também o Diabo tem semelhanças impressionantes com outra obra de Botticelli: um desenho ilustrativo de Lucifer no centro do «Inferno» de Dante.
Quanto à carta do Mundo quase parece cópia de uma outra encontrada num poço do castelo dos Sforza, uma das famílias mais prestigiadas desse período renascentista.
Alguns dos grandes mitos platónicos, como o do carro alado ou a da alegoria da caverna também integram o baralho, a par das referências aos planetas, à justiça divina ou à violência masculina.
À medida que a investigação de Philippe Truffault e Christophe Poncet avança, mais sentido faz a tese que pretendem defender: a da natureza pedagógica do tarot de Marselha enquanto instrumento de divulgação do conhecimento dos filósofos gregos com a arte da Renascença.
Fazem-no com um ritmo de filme policial, que integra as pequenas estórias capazes de darem substância à História, e recorrendo às bibliotecas, os museus, aos castelos e igrejas onde se exibem os mais interessantes tesouros artísticos desse período.
Em pouco mais de cinquenta minutos somos convidados a mergulhar numa idade do ouro do pensamento espiritual e artístico. Mas que nada tem de transcendente: apenas é algo que integra a História da Arte e da Filosofia renascentista...
Sem comentários:
Enviar um comentário