sábado, fevereiro 15, 2020

Pulsares: Os murmúrios do passado


Será inevitável a tendência para recalcarmos nas labirínticas profundezas da mente o que mais nos comprometeu? Sabemos que a memória é seletiva, mas quando indago o passado e não lembro o que me possa ter envergonhado, estarei a demonstrar a eficácia do seu recalcamento ou terei atravessado a existência sem me obrigar a um balanço tão crítico quanto admissível em todos nós? Desejaria ver confirmada a exemplaridade nos atos e omissões, mas não é incontornável a vontade de nos considerarmos melhores do que sempre fomos?
A questão surge perante Boltanski, encostado ao varandim do piso superior do seu ateliê parisiense e a afivelar um sorriso de menino travesso ao recordar o que se conta de Napoleão Bonaparte: em Austerlitz um oficial francês apontou para os milhares de mortos no campo de batalha, atónito por não lhes encontrar justificação mesmo na vitória. Ao que o general redarguiu tudo aquilo depressa ficar esquecido após uma agradável noite amorosa no regresso a casa. E essa é a questão posta pelo artista, quando contrapõe a memória ao que tende a cair no olvido. Daí uma das suas instalações mais recentes, montada na antiga fábrica Völklinger no Sarre, onde milhares de prisioneiros dos campos de concentração foram obrigados a trabalhar em condições terríveis para alimentarem a produção siderúrgica tão imprescindível ao esforço de guerra nazi.
No corredor de entrada ouvem-se vozes a sussurrar, porque só nesse tom comunicavam, poupando-se aos castigos dos algozes. Razão para Boltanski os dizer murmúrios do passado e assim crismar a obra. E existem os pequenos cacifos com os seus nomes, forma possível de lhes devolver a identidade negada pela voragem assassina das câmaras de gás.
Há quem queira negar esses crimes, como se criados pela propaganda dos vencedores, embora todas as evidências os confirmem. Procuram apagá-los das nossas memórias, quem se apressam a repeti-los, seja na expulsão e aniquilamento dos que são diferentes em cor da pele, em credos ou valores, seja levantando-lhes muros para negar acesso aos que das miseráveis lonjuras provém...
Boltanski não se poupa a esforços para nos trazer ao presente aquilo que de pior comportou o passado. Para que não se repita. Para que exija aos atuais viventes a sempiterna homenagem aos espezinhados a assassinados por quantos se julgaram superiores. E não há como fazer orelhas moucas ao que se obstina a evocar...

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