sábado, fevereiro 22, 2020

Diário de Leituras: Ecos de Modiano na prosa de Daniel Blaufuks


Ao ler Não Pai, a novela de Daniel Blaufuks dedicada  a um progenitor de quem sempre se sentiu distante e cuja morte só conheceu um mês passado sobre a sua cremação, reencontrei inesperadamente um universo literário muito do meu agrado e porventura até alheio às influências conscientes de quem o escreveu: o prémio Nobel Patrick Modiano.
De facto, a exemplo do escritor francês, existe um narrador à procura das escassas marcas deixadas em vida por quem se lhe tornou num completo desconhecido, mas de quem se procura saber algo mais. E não são os quarenta anos entretanto decorridos entre a separação dos pais e o conhecimento desse definitivo óbito, que obsta a que, através de exercícios de memória ou de investigações mais ou menos aleatórias, vá sabendo mais sobre as suas origens.  Tanto mais que sobram escassos Blaufuks por desencontradas geografias, porque a grande maioria acabou assassinada nos campos de morte nazis.
Se até agora conhecíamos a obra de Blaufuks na fotografia ou no cinema, este exercício literário deles não se desenquadra, porque a memória tem sido o seu comum objeto de interesse. Mas o foco nesse pai, que depressa deixou de o querer ser - mesmo que os contactos esporádicos só tenham cessado quando atingiu a maioridade! - interessa-o por outra abordagem pertinente: perante uma identidade tão marcante quanto o é a origem judaica, como se explica a decisão desse desconhecido em dela se apartar ao casar com uma católica e deixar para trás a ligação à ex-mulher, aos filhos e à comunidade em que se integrava. Será afinal possível alguém ser bem sucedido no esforço de deixar de ser quem era?
Esse Não Pai  pouco difere dos personagens de Modiano que tem os romances preenchidos por personagens dispostos a fazerem o necessário para simplesmente sobreviverem. E quem os procura nunca consegue abstrair-se da forma caótica como as informações se encadeiam e acabam por fazer sentido no seu todo...

Extrato: 
Descobri que o meu pai tinha morrido mais ou menos um mês depois do acontecimento.

Um curto email da sua viúva resumia tudo ao meu irmão e a mim. Estranhamente, o email tinha sido enviado para o meu irmão, que deveria ter sido mais difícil de encontrar do que eu, um texto curto e seco, mas não muito diferente da nossa não‑relação desde que ele e a minha mãe se divorciaram quando eu teria uns dois anos apenas.

Uma das minhas primeiras recordações, se não mesmo a primeira, é a de estar deitado na cama e ouvir os meus pais discutirem aos gritos, mas não sei se é verdade ou se é uma memória que construí. Quando uma vez perguntei à minha mãe, ela respondeu que poderia bem ser verdade, visto que eles realmente discutiam muito. De qualquer forma, como já disse, quando ele se foi embora, eu teria pouco mais de dois anos. Casou‑se pouco tempo depois com a mulher que, passados quarenta anos, nos escreveria este seco email.
Não via o meu pai, ou melhor, o meu não‑pai, há uns trinta anos. Não conheço o meu meio‑irmão e penso que nunca o vi, embora ele deva ser apenas três ou quatro anos mais novo do que eu. Consegui encontrá‑lo no Facebook e parece‑me ser um adepto de touradas e da monarquia, assim como de Marine Le Pen, ao mesmo tempo que se declara abertamente e orgulhosamente heterossexual. E, no entanto, ele é, tal como eu, filho de um judeu, neto de judeus refugiados e sobrinho de um homossexual, e essas são, provavelmente, as três únicas coisas que temos em comum, mesmo se, pelas fotografias, ele me pareça também usar um bigode de vez em quando.

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