quinta-feira, fevereiro 20, 2020

Diário de Leituras: Viagem à Bahia com cento e setenta páginas de permeio


1. Quase a concluir o seu mais recente título - Cinco Voltas na Bahia e um Beijo para Caetano Veloso - Alexandra Lucas Coelho conclui que “o mar que trouxe as invasões, os escravos, também leva o seu antídoto: viajar para descobrir que o outro nos descobre, que não há bárbaros. Mas viagem não é o mesmo que expedição, expedição tem desígnios, em geral coletivos. Viagem pode ser mesmo a antítese da expedição, e será com certeza antítese da conquista.”
O que ela conta é viagem, e sobretudo, à Bahia, porque Caetano lera-lhe o livro anterior e nele constatara a quase inexistência da sua cidade, se não natal, pelo menos de adoção. Por isso desligou-se umas semanas das redes sociais e outros focos de distração e escreveu esta rendição a uma cidade eivada do misticismo levado pelos escravos para as dezenas, se não centenas de terreiros nela existentes, e capaz de abalar o seu convicto ateísmo, quanto mais não seja pela beleza dos rituais.
Como leitor pouco encontrei da Bahia, que conheci no final do finado milénio, mas reconheço que ali aportei como expedicionário: tripulava um paquete cujos passageiros depressa se espalharam pela cidade e o meu interesse maior era apanhar o Elevador Marcelo para a parte alta onde poderia telefonar para casa a partir da Estação Central dos Correios e Telefones. Deu para comprovar a arquitetura de reminiscências lusas e as muitas igrejas passadas ao largo no trajeto de ida e de regresso, mas tempo não tive para conhecer a cidade no que ela mais possui de genuíno. Daí que o livro tenha constituído uma viagem por interposto testemunho, descoberto com prazer e, ao mesmo tempo, com pesar por saber todo o país agora entregue à alienação evangélica e aos ditames de um crápula. Talvez por isso haja nele a melancolia de quem sabe distanciada tal geografia nos tempos mais próximos. Porque tantos imitam Caetano e Gil que, enquanto o mundo olhava para a Lua e nela adivinhava os primeiros passos de Armstrong e de Aldrin, preparavam as malas para um exílio de indeterminada duração.
Não seria por muito tempo, que subindo a estonteantes alturas, os biltres delas se despenham com maior rapidez. O pior são os danos que a tantos causam no entretanto. Mas fica sempre a esperança desse dia luminoso e limpo em que se reinventam novos inícios...
2. Nessas derradeiras páginas do livro lembra-se também o ocorrido com Caetano quando regressado a casa depois de dois meses de prisão, que o quase quebraram, viu o pai - homem calmo, pouco dado a palavrões - dizer-lhe: “Não me diga que você deixou esses filhos da puta lhe deixarem nervoso!”. Perante tal invetiva como não endireitar os ombros e ganhar ânimo para tocar em frente?

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