segunda-feira, fevereiro 24, 2020

Galerias: O caso Caravaggio


A história parece demasiado incrível para que nela possamos acreditar, mas é assim que os intervenientes no-la transmitem no documentário de Frédéric Biamonti: em Toulouse alguém andava a limpar o sótão da própria casa, quando deu com um quadro que os peritos depressa desconfiaram ser de Caravaggio. O episódio bíblico sobre a mulher que convidava o general assírio Holofernes para a sua cama, decapitando-o tão só o apanhara distraído, fora por ele abordado em 1599 e sabia-se da existência desta obra posterior através de uma cópia de Louis Finson em cujo ateliê napolitano o pintor terá trabalhado numa curta estadia, quando fugia da perseguição dos esbirros pontifícios apostados em dar à condenação à morte contra ele proferida por um crime cometido em Roma em 1606.
A surpresa de uma obra andar desaparecida durante quatro séculos, aparecendo em circunstâncias tão suspeitas, lançou o alarme nos que a pretendiam vender e queriam esclarecida a sua autoria. Daí que o silêncio prolongou-se durante dois anos para que todos os testes esclarecessem as dúvidas remanescentes. Porque se a maioria dos especialistas consideravam improvável que alguém replicasse o mestre com tanto talento, alguns ainda torciam o nariz a pormenores, mormente os explicitados na criada que assistia passivamente ao crime. Mas nunca se saberá se, perante a apressada fuga de Caravaggio para Malta, não terá sido Finson a dar-lhe os desajeitados retoques finais ou se, em alternativa, um restauro ulterior não lhe terá desvirtuado as intenções.
O documentário privilegia todos os passos desenvolvidos por Éric Turquin para validar a tese inicial e justificar os 120 milhões de euros em que avaliou a venda em leilão. Mas serve, igualmente, de demonstração comportamental dos que, nessas mediáticas operações comerciais, estão ora do lado dos vendedores, ora dos compradores. Daí que, de alguma forma fique subalternizada a abordagem ao processo criativo de um artista tão fundamental para que a arte do século XVII desse um salto qualitativo, quer na intenção de conferir realismo à expressão dos personagens reproduzidos na tela, quer na forma de os iluminar.
Previsto o leilão para junho de 2018 ele não chegou a realizar-se porque, nas antevésperas, um anónimo empenhado em adquiri-lo lançou uma oferta prontamente aceite pelo dono do quadro. O surpreendente desfecho causou polémica havendo quem supusesse ter sido a solução elegante engendrada pelos vendedores para não se verem associados a um enorme flop. Porque acaso a licitação mais alta não diferisse dos 30 milhões previstos para lançar o regateio, quem propusera o quadruplo cairia no ridículo.
Atualmente em fase de restauro prevê-se que «Judite a decapitar Holofernes» integrará doravante a coleção permanente do Metropolitan de Nova Iorque.

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