domingo, fevereiro 23, 2020

Diário das Imagens em Movimento: «O Caso Cícero» de Joseph Mankiewicz (1952)


Em outubro de 1950 o Parlamento inglês passou por sessões particularmente agitadas ao saber-se, por um livro publicado na Alemanha, que a embaixada em Ancara fora suficientemente negligente para que documentos secretos de elevada importância chegassem às mãos dos alemães em 1944. De facto um criado do embaixador inglês conseguira apossar-se de tais informações, negociando-as com o inimigo intentando conseguir a fortuna necessária à vida de luxo, que aspirava vir a ter na América Latina, presumivelmente na companhia da condessa Slaviska, sua antiga patroa, depressa convertida nem sua cúmplice.
Embora prestes a despedir-se da Fox, libertando-se da tutela de Darryl Zanuck, com quem antipatizava, Mankiewicz entusiasmou-se com esta encomenda, que lhe chegara a desoras, porque estivera quase a ser rodada por Henry Hathaway. O argumento propiciou-lhe a oportunidade de revisitar alguns dos seus temas preferidos: as rivalidades viris, as relações de forças entre os personagens, as relações com as mulheres, a ambição, as mentiras, a manipulação, a traição e a ambiguidade dos sentimentos, que ganham particular ênfase nas confrontações verbais.
Não havendo ainda um total conhecimento dos factos, que só viriam a ser esclarecidos alguns anos depois, Mankiewicz contornou alguns dos factos reais relatados no livro orientando-os para aquilo que mais lhe importava: enquanto o mundo estava mergulhado no terrível conflito, um punhado de personagens digladiavam-se em relações de poder, que resultavam num desiderato diferente daquele que imaginavam possível.
O Caso Cícero merece ser visto à luz das diferenças de classe: os comportamentos dos personagens elucidam sobre aquela a que pertencem e dissociam-nos entre si. Diello, interpretado por James Mason, é o criado decidido a tornar-se patrão. A relação com a condessa não tem propriamente a ver com o amor, porque mais lhe importam a admiração e a inveja. Ela é-lhe socialmente superior, verdadeiro motivo da atração que lhe suscita. Tê-la ao seu nível constitui um passo em frente na direção desejada. Mas, baixando as defesas, não compreende ser ela a sua principal inimiga. Na dúbia relação da condessa com Diello, Mankiewicz cria a contradição biunívoca tão frequente na sua obra: os dois protagonistas alimentam-se um ao outro na amoralidade e no cinismo num duelo ao mesmo tempo social e sexual. Segundo Bertrand Tavernier ambos tudo fazem para formatarem a realidade à medida dos seus desejos. Num desempenho que levá-lo-ia a reconhecer ter sido dos poucos que voltaria a ver até ao fim sem enfado, James Mason representa um tipo de personagem obcecado pela ambição e por isso diz no filme: “se há algo que me desagrada neste mundo é a pobreza. E se há no futuro algo que faça fé é no dinheiro”. Mas sai-se mal, quando, relativamente à antiga patroa, entende possível inverter a relação de poder, obrigando-a à submissão.
Com O Caso Cícero Mankiewicz demonstra irrepreensível maturidade ao aliar o respeito pelos códigos dos filmes de espionagem com a sua abordagem pessoal. Consegue momentos memoráveis com a  hitchcockiana cena da mulher da limpeza, perfeita nos detalhes e coerente realismo potenciada no tenso silêncio.
Importa ainda salientar a banda sonora da autoria do mestre Bernard Herrmann, que alterna as sonoridades compostas para os momentos de suspense com as orientais e as clássicas (Chopin ou Wagner), que explicitam os conflitos de toda a intriga.
Curiosamente o filme não teve o sucesso comercial que mereceria, ficando quase esquecido em contraponto com outros de mérito menos evidente. Uma boa razão para voltar a ser apreciado...

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