domingo, fevereiro 23, 2020

Diário de Leituras: A fábula de Veneza de Hugo Pratt


Nascido na mesma cidade que Fellini, Hugo Pratt passou a infância em Veneza, conhecendo-a em todos os recantos e ganhando-lhe indelével fascínio. Não admira ter reconhecido que, entre idas e regressos por várias geografias, levado pelos mais fúteis motivos, acabasse sempre por regressar a ela.
Não admira que, em 1977, a homenageasse ao fazê-la foco de uma das aventuras de Corto Maltese - A Fábula de Veneza. Nessa história o protagonista procura uma esmeralda maravilhosa conhecida por “Clavícula de Salomão” e, para a encontrar, tem de percorrer todos os meandros da cidade.  Há, por exemplo, a loja gerida por três irmãos, dentro de cujas paredes, ela teria sido escondida. Mas a pista aí colhida redireciona-o para o Canareggio, o bairro onde, outrora, ficava o gueto judeu aí continuando a viver muitos membros dessa comunidade. Ora a esmeralda parece alcançável a partir das respostas dadas pela cabala, a interpretação mágica dos textos sagrados.
Nova viragem na investigação e temos Corto Maltese em frente aos leões, que ladeiam a entrada para uma igreja e onde se podem ler caracteres rúnicos. Deles sugere-se a importância da cadeira de São Pedro de Antioquia na Basílica de San Pietro di Castillo encimada por uma estrela de seis pontas e onde um cartógrafo árabe teria anotado a verdadeira localização da esmeralda.
Quase no final Corto vai a outra Basílica, à de Santa Maria de la Salute, e vê-se com a esmeralda dentro do bolso. Mas percebe nessa altura que a “Clavícula de Salomão” não deve ser aberta, porque ela é feita da mesma matéria que os sonhos. E daí retira-se a conclusão óbvia da joia constituir a metáfora sobre a cidade em si mesma: apesar de povoada de circunspectos mágicos e camisas negras, nunca deixa de ser o espaço onírico onde tudo se revela possível...

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