quinta-feira, fevereiro 20, 2020

Diário das Imagens em Movimento: Parasitas a preto-e-branco, o primeiro filme de Wim Wenders e a revisitação dos anos derradeiros de Vincent Van Gogh


1. Havendo quem continue sem compreender os méritos de Parasitas, o filme de Bong Joon-ho galardoado com alguns dos principais Óscares deste ano,  a polémica não tenderá a clarificar-se com a estreia da versão a preto-e-branco em alguns países. A maior parte de quantos a viram considerou nada adiantar em relação à colorida embora desse ao realizador a oportunidade para pôr à prova o confessado fascínio pelos grandes clássicos de Renoir, Fellini, Kurosawa, John Ford ou Clouzot.. Mas houve quem reconhecesse terem-se assim conseguido realçar as expressões dos rostos dos protagonistas acentuando a dimensão da luta de classes subjacente à intriga, secundarizando o quanto ela tinha de comédia.
Porque é quase certa a passagem ao largo dessa novidade pelos ecrãs nacionais, estaremos, como de costume, à margem desta nova polémica sobre um filme já de si capaz de suscitar juízos tão desencontrados.
2. Quando, dias atrás, fui questionado sobre qual havia sido o primeiro filme assinado por Wim Wenders como realizador, tive a tentação de avançar A Angústia do Guarda-Redes no momento do penalti, baseado no romance homónimo de Peter Handke. Mas tendo-o visto pela primeira vez ainda antes do 25 de abril, quando o Instituto Alemão funcionava como uma das capelinhas obrigatórias para quem pretendia assistir a uma programação cinematográfica liberta das peias da censura marcelista, recordava-me da referência a um título anterior, resultante do projeto de fim de curso na Academia de Cinema e de Televisão de Munique por ele frequentado entre 1967 e 1970.
E, de facto, assim sucedeu: Summer in the City é a primeira longa-metragem no percurso de Wim Wenders como realizador, já nela se reconhecendo temas do seu particular agrado: Hans, o protagonista acabado de sair da prisão, parte para Berlim à procura de um amigo, transitando entretanto por bares e ruas denunciadoras da decadente Alemanha Ocidental. Personagens à deriva motivados por um qualquer objetivo meio indefinido, e transitando em formas diversas de no man’s land não faltariam em muitos dos seus filmes vindouros.
Importa reconhecer que Wenders autobiografa-se amiúde através desses alter egos: antes de concluir este curso estivera brevemente matriculado em medicina e em filosofia, falhara na ambição de se tornar pintor em Paris, onde chumbara igualmente na tentativa de ingresso no IDHEC, então uma das mais prestigiadas escolas de cinema europeias. Pode-se dizer que, para ele a Hochschule für Fernsehen und Film München funcionou como a desesperada janela de oportunidade pela qual encontrou a sua vocação.
3. Pude agora rever A porta da Eternidade, o filme com que Julian Schnabel quis abordar os últimos anos de vida de Vincent Van Gogh, e reencontrei o prazer da primeira abordagem por razões, que o tornam mais interessante do que as versões anteriores com Kirk Douglas ou Jacques Dutronc. Por um lado porque embora Minnelli e Pialat tivessem sido reconhecidos estetas não possuíam a experiência pictórica de Julian Schnabel, que tem apresentado criações ora nas galerias de arte, ora nos ecrãs de cinema. Mas há sobretudo Willem Dafoe em estado de graça, o que não é difícil de reconhecer para um dos mais interessantes e menos aclamados atores do nosso tempo. Embora não faltem excelentes atores a com ele contracenarem - Oscar Isaac como Gauguin, Amalric como Dr. Gachet, Mikkelsen como padre do asilo ou Emmanuelle Seigner como srª Ginoux - o protagonista leva o filme às costas e dá-lhe uma verosimilhança irrepreensível apoiado, sobretudo, na fotografia exemplar de Benoît Delhomme, que confere à câmara uma permanente agitação, consonante com quanto se passa na cabeça do artista. E existem, igualmente, as opções cromáticas, todas convergentes com as cores mais comuns nos quadros dele conhecidos.
Pode-se contestar a tese do assassinato, conhecida mais recentemente, e contrária à canónica aceitação do suicídio por parte de Van Gogh. Mas, como acontecia no final de um antológico filme de John Ford, não virá mal nenhum ao mundo se, entre a realidade e a lenda, fixarmo-nos nesta última...

Sem comentários: