sexta-feira, fevereiro 07, 2020

Diário das Imagens em Movimento: Mais do que nele crer, Kirk Douglas inventou o sonho americano


Na passada quarta-feira chegou a notícia da morte de Kirk Douglas com a provecta idade de 103 anos.
Figura maior do cinema norte-americano foi muito popular nas décadas de 50 e de 60 do século passado, quando alguns dos filmes que interpretou alcançaram a condição de grandes clássicos da História do Cinema nos diversos géneros em que se incluem: a comédia, a aventura, o western, o filme histórico, o de guerra ou o dramático.
Convicto progressista, que tanto enfrentou os donos de Hollywood, quando exigiu a contratação do proscrito Dalton Trumbo para assinar o argumento de Spartacus como sempre manifestou apoio ao Partido Democrático, nem mesmo a avançada idade o impediu de verberar Trump como político execrável.
Não admira que muitos dos temas dos seus filmes fossem problemáticos para quem exercia o poder: Horizontes de Glória, por exemplo, esteve proibido em muitos países europeus até 1975 só por denunciar o fuzilamento dos que recusavam ser carne para canhão nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Mas alguns dos westerns em que participou também contribuíram para reabilitar a imagem do índio e verberar o racismo
Quarto dos dez filhos de uma família judaica fugida da Bielorrússia para escapar à pobreza  e ao antissemitismo da Rússia czarista, Issur Danielovitch Demsky nasceu em 1916 no Estado de Nova Iorque.
Na infância, quando mudara o nome para Izzy Demsky, recebeu aplausos ao recitar um poema na escola e compreendeu que ser ator seria a futura vocação. A família opõs-se a essa ambição e impõs-lhe a matrícula na Universidade de St. Lawrence, onde aprendeu a ripostar ao bullying dos colegas da forma como descobriu ser a mais eficaz: com a força dos punhos.
Na mudança para a grande cidade, decidido a trilhar caminho como ator, incitaram-no a mudar novamente de nome datando de então o Kirk por que viria a ser doravante conhecido. Conseguiu alguns papéis no palco, frequentou a Academia Americana de Arte Dramática onde encontrou Betty Bacall (a futura Lauren), e, sobretudo, Diana Dill, que virá a ser a sua primeira mulher.
Alistando-se como fuzileiro em 1939, foi desmobilizado em 1943 na sequência de uma disenteria crónica. Pode então voltar ao teatro e, sobretudo, ao cinema onde, graças a Lauren Bacall, obteve alguns papéis como ator secundário.
Apareceu-lhe então o primeiro papel como protagonista em O Grande Ídolo de Mark Robson em 1949, que lhe valeu a primeira nomeação para o Óscar. Fazia de boxeur ambicioso, que perdia os amigos, abandonava a família, traía o treinador que tanto o ajudara, trocava de esposa e, depois, de conhecer a glória, conhecia trágico fim.
O sucesso valeu-lhe um contrato com a Warner, que o obrigou a interpretar filmes ininterruptamente. O mais interessante, embora resultasse num fracasso comercial, intitulou-se O Grande Carnaval de Billy Wilder em que era um jornalista, outrora conceituado, mas entretanto caído em desgraça e disposto a transformar um pequeno acidente de trabalho num acontecimento nacional com um desenlace trágico.
Quando se libertou do vínculo à Warner e ganhou a independência viu-se novamente nomeado para o Óscar em Cativos do Mal  de Vincente Minnelli em que fazia dupla com Lana Turner. Era um produtor trapaceiro, que cruzava-se com uma diva alcoólica e a procurava seduzir para um «projeto infalível».
Os belos olhos da atriz italiana Anna Maria Pierangeli trouxeram-no à Europa para rodar filmes com dois produtores ainda pouco conhecidos; Dino de Laurentis e Carlo Ponti.
Foi no regresso a Hollywood para rodar as Vinte Mil Léguas Submarinas, que leu com tanto entusiasmo um romance sobre a vida de Van Gogh, cujos direitos de transposição para o ecrã logo pagou.  Não pensava que o encontro com a personalidade do atormentado pintor o levasse quase à beira da esquizofrenia. A terceira nomeação para o Óscar voltaria a defraudar-lhe as expetativas de o vir a obter.
Sucederam-se alguns dos mais memoráveis filmes do seu percurso interpretativo: Duelo de Fogo de John Sturges, em que faz de Doc Holliday, com Burt Lancaster no papel de Wyatt Earp, o já referido Horizontes de Glória e Os Vikings.
Vexado por ter sido preterido para protagonista de Ben-Hur decidiu contrapor-lhe outro épico passado na Antiguidade Romana: Spartacus. E que notável filme continua nessa história de um escravo decidido a fazer o Império tremer. Conta a lenda que Kennedy ousou furar os piquetes, que queriam impedir os espectadores de entrarem para ver um filme escrito por um comunista, e foi-se sentar num cinema a apreciar a obra.
E já que havia quem quisesse manter Dalton Trumbo na lista negra, voltou a contratá-lo para escrever um western intitulado Fuga sem Rumo, que corealizaria com David Miller.
No teatro conseguiu um enorme êxito em Voando sobre um Ninho de Cucos, que não conseguiu adaptar ao cinema, o que só viria a ser alcançado por Milos Forman em 1976.
Nos muitos filmes posteriores assinalem-se Os Heróis de Telemark, rodado por Anthony Mann em 1965, em que era um cientista apostado em travar a progressão industrial alemã durante a Segunda Guerra Mundial, ou A Fúria de Brian de Palma em 1971 em que contracenava com John Cassavetes. Mas até 2008, quando participou num telefilme de William Karel de homenagem ao filme negro norte-americano (Meurtres à l’Empire State Building), ainda o encontraríamos em dezenas de filmes para cinema e televisão.
Com a sua morte foi mais um dos sobreviventes da exultante época do cinema de Hollywood a desaparecer de vez.

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