sexta-feira, fevereiro 28, 2020

Diário de Leituras: As mágoas das mães e das filhas


O que singulariza Elizabeth Stout no contexto norte-americano de escritores contemporâneos é a forma como constrói a narrativa: em «O Meu Nome é Lucy Barton» há uma narradora a recordar a experiência vivida muitos anos atrás quando, hospitalizada durante nove semanas devido a uma anódina operação ao apêndice, teve a improvável visita da mãe a quem não via desde o final da adolescência. Nascida e criada numa povoação rural do Illinois, alavancara-se a partir da universidade para escapar a valores e ambientes, que execrava. Melhor ainda, decidira tornar-se escritora, traduzindo para o papel muito do que vivenciara como se a catarse propiciada pela memória lhe favorecesse o distanciamento definitivo em relação a esses acontecimentos.
Embora considerado um romance sobre o relacionamento das mães com as filhas não é esse o entendimento que retive da leitura. As personagens até podem manifestar empatia através das fórmulas proporcionadas pelas palavras, mas os corpos não se tocam, quase se repelem. Porque, na verdade, nem Lucy conhece da mãe mais do que o seu lado superficial nem, por seu lado, se dispõe a confiar-lhe as dúvidas íntimas que fazem pressentir-lhe o futuro subsequente. Porque, na nossa omnisciência, também sabemos que, entretanto, ela já se separou do primeiro marido sem nunca apontar razões para essa rutura - várias vezes alerta o leitor para o facto de não ser esse um tema chamado para esta história - e casou com um violoncelista por quem não se lhe imaginam fogosos deslumbramentos.
Será por dever que rompe com a decisão de não voltar ao espaço natal, quando a mãe adoece e logo morre. Mas não nos serão dadas chaves de interpretação para perceber os motivos porque, tão só chegada junto do leito da moribunda, ela se apresta a exigir-lhe que dali saia. Elizabeth Strout não nos baliza quaisquer sugestões: se queremos dar alguma explicação para o comportamento frio dos personagens fazemo-lo por nossa conta e risco. E reencontramos em Lucy uma misantropia já reconhecida em Olive Ketteridge: percebendo-se que deparamos com personagens magoadas desde a infância, a solidão acaba por servir-lhes de carapaça protetora para as sempre temidas e inesperadas agressões alheias. Mesmo aparentemente inseridas em fúteis sociabilidades...

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