sexta-feira, fevereiro 14, 2020

Diário de Leituras: ando a ler Alexandra Lucas Coelho e Elizabeth Strout


É feitio, que cedo me tomou e de que jamais abdicarei, porque se como defeito começou, em feitio se converteu: nunca levo um livro de fio a pavio, demorando-me na sua descoberta em alternância com outros, igualmente, presentes na mesa de cabeceira ou na secretária em que trabalho. Prefiro o fluxo de descobertas e interrupções, de reencontro e reaferição sobre o que deles anteriormente conheci para prosseguir esse desvendar do que me possam dar até à página derradeira.
Nalguns casos  as projetadas trinta ou quarenta páginas de cada vez, aceleram para o dobro, e são esses os dos meus mais gratos entusiasmos. Noutros, esse ritmo ajusta-se aos demais afazeres quotidianos e alcanço o desiderato sem enfado, mas também sem exultação. O meu diário de leituras é feito de diversidade nos temas e nas reações que vivencio.
«Cinco Voltas na Bahia e um beijo para Caetano Veloso» é um dos  títulos, que me vão preenchendo o ofício de leitor por estes dias. Sempre gostei do que Alexandra Lucas Coelho escreveu, quer em crónicas nos jornais, quer nos livros a que se tem dedicado nos anos mais recentes, e este não fugirá à regra. Nas deambulações por um Brasil pré-Bolsonaro ou em que essa terrível realidade se consumou, invoca-se o esclavagismo, de ontem e o ainda hoje existente para explicar as razões porque Lula e Dilma apenas almejaram ser exceção numa contínua assumpção do poder pelos mais ricos de entre os muito ricos e como para estes não há reservas naturais, direitos dos ameríndios ou outros valores civilizacionais, que obstem à obscena ganância de ainda mais enriquecerem. Ademais, e como sempre, é belissimamente bem escrito como se constata neste trecho em que a autora explica a vocação itinerante pelo redondo mundo, mesmo deparando com planas estupidezes:
“Da janela do quarto onde cresci, e onde portanto comecei a ouvir Caetano, eu via o Tejo da altura de um oitavo andar, com os navios passando ao fundo, veleiros, cargueiros, porque ali o rio vai largo, e em muitos dias não se vê outra margem, parece o mar. Então, essa é a minha primeira imagem-ideia de partida, o sonho daqueles barcos no fio do horizonte, promessa de que o mundo nos espera se formos, esse mundo, que nunca acaba de se revelar, tal como o horizonte nunca acabará se por ele avançarmos, sempre rumo aos antípodas. Pela simples razão de que a Terra é redonda, tal como a estupidez é plana.”.
(Alexandra Lucas Coelho, «Cinco Voltas na Bahia e um beijo para Caetano Veloso)
Noutro registo completamente diferente aparece-me Elizabeth Strout. Ela apareceu-me pela primeira vez, quando li o genérico de uma boa série com a mais entusiasmante das atrizes norte-americanas - Frances McDormand em «Olive Kitteridge» - e a soube sua autora.
«O Meu Nome é Lucy Barron» é a segunda investida, que faço na sua obra e o início promete-me satisfação igual ou superior, ao tido com a recente descoberta de «Tudo é Possível»:
Houve uma altura, e isto passou-se há muitos anos, em que tive de ficar hospitalizada durante quase nove semanas. Foi em Nova Iorque e, à noite, da minha cama, era possível ver diretamente o Edifício Chrysler, com o seu cintilar geométrico. Durante o dia, a beleza do edifício dissipava-se e, gradualmente, tornava-se apenas outra grande estrutura contra o céu azul, e todos os edifícios da cidade pareciam distantes, silenciosos, longínquos. Estávamos em Maio, seguiu-se Junho, e lembro-me de ficar de pé a olhar pela janela para o passeio lá em baixo, a ver as raparigas — da minha idade — com as suas roupas de Primavera, a desfrutarem das suas horas de almoço; conseguia ver-lhes as cabeças a mexerem-se durante as conversas, as blusas a ondularem na brisa. Pensei em como, quando saísse do hospital, nunca mais caminharia pelo passeio sem dar graças por ser uma dessas pessoas, e durante muitos anos fi-lo — lembrava-me da vista da janela do hospital e rejubilava com a calçada sob os meus pés.
(Elizabeth Strout, «O Meu Nome é Lucy Barron»)
Fica a expetativa do confronto da narradora com a própria mãe, que já não via há muitos anos, desde que deixara o Illinois natal, mas promete ser, sobretudo, o dela consigo mesma, porque distante de quem em tempos fora, também melhor não se viria a sentir com aquela em que se tornou. E, ademais, a curiosa sensação de não ter existido diferença de maior, quer em rendimentos, quer em valores,  entre as zonas periféricas dos Estados Unidos e as portuguesas de há meio século atrás.

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