Nos meses mais recentes tenho pedido o Livro de Reclamações com razoável frequência, tão-só me sinta tratado de forma diversa da que me cabe de direito enquanto cliente.
Consegui assim que o Leclerc da Amora mudasse os carrinhos de compras, que enojavam tocar tal era a sua imundície ou o ACP me pedisse formalmente desculpa pela demora de uma hora numa das suas lojas para assunto que demoraria apenas cinco minutos a resolver.
Ontem, numa grande superfície, a minha cara-metade também se encolerizou com uma funcionária, que aventava a impossibilidade de, pelo computador, fazer a encomenda de um produto esgotado, afinal «milagrosamente» surgido do armazém, quando a tensão ameaçava descambar em peixeirada. Ou será que teve um estímulo proactivo porque me intrometi a sugerir nova utilização do referido Livro para anotar o nosso descontentamento?
Estas situações interligam-se com a conversa tida dias atrás, no Canal Arte, entre Raphäel Enthoven e o filósofo Valéry Laurand em torno de uma citação de Séneca segundo o qual o facto de nos encolerizarmos, far-nos-ia perder a razão, o controle da situação. E por isso valorizava o exercício da meditação como tendo o potencial de nos limitar a expressão dessa raiva.
Mas, em contraponto, quando cedemos à cólera não estamos afinal a dizer a «nossa verdade», aquilo que realmente pensamos?
Quando lamentamos o que a cólera nos fez dizer e nos retratamos, não estamos a trair-nos apenas em atenção às dores do outro?
Na imagem da cólera de Aquiles, testemunhada no cartaz de um peplum italiano dos anos 60, a ira do herói grego justifica-se por tudo quanto dele sabemos na «Ilíada» de Homero: espoliaram-no da sua bem-amada escrava. É por amor, por ciúme, por sentido da honra, que se sente lesado. Ou não questione Briseis, ao recuperá-la, se ela chegara a dormir com Agamémnon! E ameaça deixar o aliado sozinho no campo de batalha contra os Troianos, possibilitando-lhes a reviravolta capaz de fazê-la perder pelos gregos.
Platão haveria de condenar o elogio que Homero faz da cólera porque seria assim um mau exemplo para a juventude. O filósofo não podia aceitar que um herói pudesse encolerizar-se, porque isso colidiria com o ideal de autocontrole que sempre saberia demonstrar.
Aristóteles, pelo contrário, valorizaria a importância da cólera no suplemento de coragem de que os heróis necessitariam para vencer as respetivas batalhas. Por isso tratar-se-ia de a utilizar com conta, peso e medida…
A expressão que Hergé empresta ao professor Tournesol numa das páginas derradeiras de «Voo 714 para Sidney» revela uma das facetas da cólera: assumindo-a, perdemos a nossa humanidade, ficamos corados, temos dificuldade em proferir um discurso coerente, aproximamo-nos da bestialidade. Séneca considerava este momento como o da libertação da alma, a sua dissociação de qualquer possível racionalidade.
Num debate televisivo da campanha presidencial de 2007 Ségolène Royal conseguiu ser muito subtil ao dizer-se “encolerizada sem se enervar” perante Sarkozy, que ganharia essa eleição. Mas tal momento revelava a possibilidade de gerir a cólera de forma racional perante o que justificava a indignação - as políticas injustas da direita.
A cólera tem, de facto, plena justificação como ato político, quando se faz voz dos descontentes, dos lesados, dos que se sentem perdedores. Para um epicurista o sábio pode sentir justa cólera, aquela que não conduz à violência, mas reforça os argumentos numa discussão em que a retórica tem relevância.
Enquanto a cólera de Aquiles era pessoal, a de Ségolène revelava-se moral e daí bastante mais abrangente, suscitando empatia por parte de quem a presenciava, ou pelo menos, apoiava. Mas, ainda assim justifica-se a dúvida colocada por Platão: aceitamos, de facto, os heróis que se encolerizam?
A questão torna-se ainda mais atual porque será previsível que, perante sucessivos obstáculos às manifestações da sua vontade, Trump venha junto dos seus eleitores queixar-se do juiz que travou a ordem de suspensão de entrada de muçulmanos ou dos ingleses que não o querem deixar falar no parlamento ou sequer pisar solo britânico.
Será que o seu progressivo desfasamento com a apreciação dos seus próprios eleitores, não provirá precisamente dessa incapacidade em ter a frieza requerida pelos heróis?
No entanto, no contexto de uma manifestação em que se confesse tal cólera, exposta na forma de um cartaz, existe uma distinção entre esse estado de alma e o que se traduz em palavras, e que impõe uma racionalização. Uma vez mais está-se no terreno da moral em que se pretende exprimir a dimensão amplificada de uma indignação. E isso pode constituir uma estratégia eficaz...
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