Costumo dizer que, acaso me visse no célebre dilema de escolher três livros para me acompanharem numa ilha deserta, um deles seria de Gabriel Garcia Márquez: «Cem Anos de Solidão».
Se conheci momentos mágicos enquanto leitor foi quando abri a primeira página desse romance e dei com este início perfeito: "Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo."
Espreitando a biografia do autor há muita semelhança entre Aracataca, onde nasceu, e a vila de Macondo onde se passam muitos dos seus romances, contos e novelas. Olhando para o mapa da Colômbia, uma e outra situam-se no centro da região de plantações bananeiras então em pleno auge da sua exploração por multinacionais norte-americanas. Muito embora a verdadeira Macondo pouco tenha a ver com a sua homónima ficcionada.
Décadas depois, no título do seu livro de memórias, Gabriel reconheceu ter vivido para contar por escrito tudo quanto vira e conhecera. Até mesmo quando ainda nem nascido era, mas se conjugavam os fados para que viesse a constituir-se no corolário do complicado namoro dos pais. Essa estória serviria de inspiração para «Amor em Tempos de Cólera».
Avancemos então para essa proto-história do futuro escritor, na perspetiva de toda a sua longa vida possibilitar-nos o contacto com muitas mais: Luísa, a filha do coronel Nicolás Mejia e de Dona Tranquilina Marquez, deparou com a forte resistência dos pais, quando se tomou de amores pelo pobre mestiço da estação telegráfica, Gabriel Garcia, conhecido partidário do partido conservador e, pior ainda, namoradeiro incorrigível.
Nem mesmo com o forçado afastamento de Luísa de Aracataca, o fervor amoroso do par abrandou, de tal forma as serenatas, os poemas de amor e as numerosas cartas do pretendente tinham inflamado o romântico coração da rapariga. Rendidos à impossibilidade de lhe contrariarem a vontade, o coronel e a esposa acabaram por aceder ao casamento da filha com o futuro genro, embora se escusassem a comparecer à cerimónia em Santa Marta, cidade a que aportei há cerca de vinte anos desconhecendo ainda quão determinante fora para aquele que já era um dos meus autores de eleição.
O primeiro dos onze filhos de Gabriel e Luísa nasceu a 6 de março de 1927, durante uma noite de tempestade e em que o drama esteve quase a consumar-se, porque o bebé vinha com o cordão umbilical em torno do pescoço. No futuro o escritor sempre associaria a atroz claustrofobia a essa experiência traumática.
Dois anos depois o telegrafista ambicionou melhorar de vida, estabelecendo-se em Barranquilla como farmacêutico, e confiando o primogénito a Nicolás e Tranquilina.
Ele conta-lhe muitas histórias ocorridas entre 1899 e 1902, quando participara ativamente no conflito civil, que ficaria para a História como a Guerra dos Mil Dias, tornando-se num dos heróis dos liberais. Além de ser professor rigoroso e notável contador de histórias, Nicolas levava o neto todos os anos ao circo e deu-lhe a conhecer pela primeira vez o prazer de um gelado, numa das lojas da United Fruits. A estória aproveitada para o tal começo de «Cem Anos de Solidão»!
Nicolas era igualmente admirado pela coragem com que denunciara o massacre de trabalhadores numa das plantações locais, quando o neto tinha apenas um ano de idade, e por possuir um código ético, que o levara a dizer a Gabriel ser o homicídio um fardo demasiado pesado a consciência de quem o perpetra.
Dona Tranquilina exerce outro tipo de influência: o de falar de coisas extraordinárias como se fossem banais. Por isso as suas histórias eram invariavelmente sobre os fantasmas e espíritos sobrenaturais, que habitavam aquela casa há muito na família, bem como premonições, presságios e profecias, que muito contribuiriam para a imaginação do neto e para a sua natural inclinação para se tornar num dos maiores expoentes do realismo mágico da América latina.
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