Se no ano transato, «A Espada e a Azagaia» foi o que, de todos os livros lidos, o que mais me agradou, cresce a expetativa quanto ao que trará a terceira parte da trilogia «As Areias do Imperador».
O primeiro volume, «As Mulheres de Cinza» correspondia à terra, o seguinte aos rios por onde os personagens deambulavam acima e abaixo, o próximo já terá como realidade maior o oceano em que Gungunhane será obrigado a viajar, tendo-o por cenário no forçado exílio na ilha Terceira. Será o mar como lugar interdito, a representação simbólica da morte intuída pelo antigo imperador.
Na entrevista ao JL de 18 de janeiro, Mia Couto explica quem é para si esse personagem: “a imagem de grande poder era ilusória. Parece-me até uma pessoa infeliz, impotente em relação ao que verdadeiramente queria. Como todos os infelizes, compensava as ausências com excesso, com o sonho de ter mais terras ou mais mulheres.
No livro refiro o caso do seu grande amor, que não é assim tão inventado e inspira-se numa certa memória que subsiste. Tinha 300 e tal esposas, mas a única mulher que amava foi morta pela sua corte. Era um amor interdito.
Tudo isso ajudou-me a definir uma dimensão mais humana. Podia ser alguém sentado à nossa mesa a queixar-se das suas mágoas. Porque o que me interessava era conhecê-lo na intimidade. Quando Imani visita Gungunhane numa pequena palhota descobre-o frágil, a pedir uma massagem porque sofre dos joelhos. Era com essa personagem que eu queria lidar.”
Antes de abordar esta fase da obra do escritor moçambicano a minha ideia de Gungunhane era diferente: rejeitava em absoluto a forma como Jorge Brum do Canto o concebera no seu panfletário «Chaimite» em 1953, que buscava a legitimação do colonialismo e a mistificação do tosco império português, mas imaginara-o mais consciente do seu papel de líder libertador do seu povo.
Mia Couto dá-nos de Gungunhane a perspetiva de um opressor de outros povos negros, cujas terras e riquezas procurava conquistar para si. Nesse tempo histórico não existem heróis, nem maus da fita: apenas a dominação do mais forte sobre o mais fraco. E o aventureirismo bacoco de Mouzinho de Albuquerque beneficiou da nem sempre certa sorte dos irresponsáveis. Contasse ele com adversário mais arguto e a presença colonial portuguesa em Moçambique teria cessado nesse ano de 1895 em que a própria monarquia estava moribunda depois de achincalhada pelo Ultimato Britânico.
Sem comentários:
Enviar um comentário