Por ser ano de centenário vamo-nos fartar de Fátima nos próximos meses. Saem livros, saem revistas, recuperar-se-á o filme tenebroso pelo qual Catarina Furtado, se lhe não faltassem outros pecados, merecia definitiva condenação às profundezas do Inferno. E, porque negócio é negócio, conhaque é conhaque, até o Papa Francisco virá abrilhantar a festa, porque acredite ou não na consistência do relato dos pastorinhos, os milhões embolsados pelas igrejas católicas por conta do culto da Virgem local não são rendimentos de que possa prescindir. A máquina de acorrentar as consciências aos dogmas de tão inepta transcendência é demasiado cara para reconhecer que a ignorância dos videntes os tornara presa fácil de prelados decididos a reverter tudo quanto a República contra eles legislara e nada melhor do que inventar milagres onde camponeses idiotas predominassem sobre quem, pelas letras e pensamento, se mostrassem urbanamente mais esclarecidos.
O fenómeno sociológico de Ourém é-me bem conhecido: em miúdo a devoção materna obrigava a aí ir todos os anos. Às vezes duas, se não três. Pouco a pouco fui comprovando o que ali se passava: não era a crença que mobilizava os milhares de peregrinos, mas o interesse egoísta de verem resolvidos os problemas com que se confrontavam. Doenças, perigos das guerras em África, sucessos conjugais, escolares ou profissionais, entre tantos outros.
Davam-se voltas ao redondel, de joelhos ou em passo lento, com círios ou sem eles, debitavam-se as ladainhas convencionadas e lá se regressava a casa consolado na esperança de ter sido ouvido. Se o pedido fora coisa fácil de garantir, proclamava-se o milagre, se se tratava de algo mais difícil lá se repetia a visita, tantas vezes quantas as necessárias, na esperança de comover a invisível divindade com desejos, que se ambicionavam ver transformados em realidades. Não era deus, que procuravam, mas a satisfação das ambições pessoais.
Seria coisa trivial se não implicasse tudo o resto: o agrilhoamento luso ao que de mais retrógrado subsiste a nível de valores. Basta a sociedade movimentar-se no sentido de dar mais direitos a quem ainda os não tem e lá temos os padres a homiliar nas igrejas e grupos serôdios a invadirem redes sociais e espaços públicos com investidas totalitárias. A mais recente é a do direito em se pretender morrer sem dor no momento mais adequado e sem dar explicações a quem quer que seja. Esse desejo vê-se coartado por quem se considera legitimado a obrigar quem nem sequer conhece a viver até que o corpo decida, mesmo implicando dores terríveis ou desmemoriamentos senis.
Tal como combatendo o aborto clandestino assassinou inúmeras mulheres, o fanatismo religioso, por ele responsável, obriga desesperados a darem-se à morte com sofrimentos desnecessários.
Vem esta reflexão a propósito do lançamento de «O Sol Bailou ao Meio-Dia» da autoria do Professor Luís Filipe Torgal, que ontem no-lo apresentou na Associação Gandaia da Costa da Caparica. Obviamente que, tratando-se de obra de Historiador (com H grande para distinguir dos ruíramisismos que por aí pretendem aquilatar-se a tal estatuto) não tem a carga emotiva do meu testemunho. Trata-se, sim, de obra científica, fundamentada em tantas fontes documentais quantas as possibilitadas pela sua morosa investigação.
É essa a sua importância! Quem acredita no carácter milagroso do fenómeno encontrará porventura argumentos para neles consolidar a crença. Mas, para mim, ateu impenitente, o que fica é a validação do que concluíra através das contradições evidentes nos materiais de origem religiosa. Depressa concluo que o milagre do sol terá sido mera singularidade meteorológica, nem sequer constatada pela maioria dos presentes e que os três segredos de Fátima começaram por ser só um, e evoluíram em número e substância de acordo com as conveniências de quem lhe ia formatando a lenda: a Igreja e o regime, que a usaria e abusaria sem pudor.
O fenómeno sociológico de Fátima poderá ainda viver ilusórios sucessos como o rio, que antes de definhar tenta ressurgir com os afluxos prodigalizados aqui e além pelas secas nascentes. Mas no tipo de sociedade para que evoluímos está, mais tarde ou mais cedo, condenado a tornar-se mera curiosidade histórica.
Após esta fase de trumps apostados em fazer a História da Humanidade rodar para trás, como se conseguissem devolver-nos a épocas ultrapassadas pelos meios de produção e valores a eles associados, a revolução tecnológica comportará novas lendas, que condenarão os atuais deuses à irrevogável obsolescência.
Sem comentários:
Enviar um comentário