Ao conhecer Nova Iorque pela primeira vez - já lá vão quarenta anos! - tinha ainda bem presente um texto assinado por Fernando Namora para uma das revistas de então. Ou a «Flama» ou o «Século Ilustrado».
Não sei se saíra antes ou depois da Revolução de Abril, mas deixara-me profunda impressão, porque dizia algo que nunca mais esqueci: não existe uma América, mas muitas Américas. Quando nos exaltamos com as derivas reacionárias de uma, há tantas outras a, nesse mesmo momento, produzirem vários tipos de revolução.
Nessa primeira experiência na cidade, que nunca dorme, confirmei essa multiplicidade de rostos: a familiar patente num cartaz em Elizabeth onde alguém alertava os vizinhos para ter ali acabado de nascer um bébé de nome Tom; a ameaçadora como constatámos no Union Park, quando íamos piquenicar por baixo de uma árvore e demos com a marca a tinta preta da disposição de um corpo recém-assassinado ali encontrado; a solitária, quando uma noite nos perdemos no Bairro Italiano e nenhum táxi aparecia disponível para nos levar de regresso ao local de pernoita; a das multidões, quando mal nos podíamos mexer a hora de ponta em Times Square sob os néons dos teatros da Broadway; a das drogas pressentidas no piso inferior do ferry entre Manhattan e Staten Island; a da farta pornografia na Quinta Avenida com sex shops porta-sim, porta sim, que desapareceriam anos depois, não as voltando a reencontrar há sete ou oito anos, quando ali estive mais recentemente. A listagem poderia aqui prosseguir exaustivamente ocupando muitas páginas, mas a ideia geral é essa. Mesmo quando olhamos para a América de Trump, incorremos em erro crasso se a vemos apenas na dicotomia entre quem o apoia e quem o odeia.
Há pouco tempo, enquanto preparava o doutoramento e passava horas em bibliotecas, a investigadora Carla Baptista começou a tropeçar em sucessivos textos de autores portugueses, que tinham viajado ou vivido nos Estados Unidos e dele davam as suas perceções. Surgiu-lhe, então, a ideia de «American Beautiful», uma antologia de 14 de entre eles e num período compreendido entre 1866 e 1972.
O texto mais antigo é de Eça de Queirós que, em carta para Ramalho Órtigão, dá conta das muitíssimas razões para odiar a América, mas também para a amar. Os treze escritores, que se lhe seguirão, alinham todos pela mesma bitola, encontrando-se entre eles António Ferro (em 1927, antes de se render aos fascínio salazarista!), Natália Correia, Jorge de Sena, Oliveira Marques e José Rodrigues Miguéis.
Na metodologia seguida pela compilação houve a preocupação de escolher textos pertencentes a décadas distintas, só lhe falhando a que ia de 1910 a 1919, mas confirma-se o que Fernando Namora me alertara para encarar a realidade americana com as precauções de quem ia avisado da complexidade do que iria ver. E por isso faz sentido lê-lo nesta altura para compreender quão limitada é a interpretação do que nela queiramos analisar se a virmos pela distorcida lenta do trumpismo.
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