Foi um dos filmes que muito apreciei em adolescente: «55 Dias em Pequim» de Nicholas Ray espelhava o cerco das legações europeias na capital do Império Celeste em 1900, com Charlton Heston e Ava Gardner nos papéis principais.
Maniqueísta, como eram os filmes de grande orçamento dos estúdios de Hollywood na época, e dos quais Ray viria a ser escorraçado por irreverência excessiva, narrava os factos então ocorridos, acentuando a heroicidade dos brancos e a ruindade dos orientais. Como de costume a História registava-se pela ótica dos vencedores.
Aprofundando os acontecimentos de então houve algo que os aproximou da Revolução Francesa de um século atrás: uma corte a viver luxuosamente, ostensivamente alheada das condições miseráveis do povo, agravadas pelas cheias e pela seca de 1899. A fome dos camponeses constituiu um rastilho fundamental para exacerbar a tensão social. E, como costuma suceder nessas ocasiões, arranjaram-se bodes expiatórios sobre os quais se concentrou o ódio, o instinto assassino.
Numa altura em que o filme de Scorcese sobre o martírio dos cristãos em território nipónico está a suscitar alguma atenção, algo de semelhante se passou na China imperial dois séculos e meio depois: as missões religiosas espalhadas pelo país são atacadas pelos boxers, um movimento rebelde de jovens camponeses sem trabalho. Convenientemente organizados em torno de dois conceitos muito básicos - que os católicos impediam as chuvas de alcançarem o território onde as suas terras delas estavam sedentas e que todos os estrangeiros em geral eram nocivos para os interesses do povo - o plano consistia em assassiná-los e/ou expulsá-los com grande determinação e número crescente de seguidores.
Na corte confrontam-se dois grupos de interesses: os nacionalistas do príncipe Duan apoiam os boxers e têm o apoio da viúva do imperador, que retomara a s rédeas do poder quando o jovem sucessor se mostrou demasiado cosmopolita para os valores professados pelos cortesãos. Os que defendiam a abertura ao exterior com negociações mais justas com as potências europeias eram desprezados por serem tidos como minoria irrelevante.
Havia em Duan um outro objetivo, que justificava as suas intrigas: derrubando o jovem imperador, aspirava a substitui-lo pelo próprio filho.
Em junho os acontecimentos precipitam-se: as embaixadas ocidentais recebem notícias de chacinas de católicos um pouco por toda a China e o próprio representante alemão, Von Ketteler foi assassinado numa das suas deslocações pelas ruas da capital.
Tseu-Hi, a influente tia do imperador, lança um ultimato de expulsão dos estrangeiros, que estes não acatam. O cerco inicia-se e durará 55 dias, com os 400 fuzileiros europeus a resistirem às vagas de atacantes, mas sofrendo baixas, que impõem a mobilização dos poucos homens, que exerciam funções burocráticas no perímetro acossado.
As esperanças de socorro vindas dos navios militares ao largo esvaem-se, quando as forças por eles desembarcadas sofrem pesadas derrotas nas lutas com guerrilheiros, tardando a tomada de Tianjin, obstáculo de monta para fazer chegar os reforços aos sitiados. Quando isso efetivamente acontece o massacre parecia iminente restando poucos combatentes europeus em estado de pegarem uma arma, até por já estarem igualmente quase esgotadas as munições.
Embora na Europa se dê pouca importância à vitória, que permitiu manter a China num estado neocolonial até à invasão japonesa dos anos 30, ainda hoje os chineses consideram um trauma esse momento em que tropas de oito nações saquearam Pequim, donde a família imperial e a Corte haviam fugido, permitindo assim a ocupação da Cidade Proibida.
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