quarta-feira, julho 10, 2019

(DL) Horizontes sem ângulos


1. Se há exemplos de diluição das biografias dos escritores com os seus escritos, Honoré de Balzac constitui singular exemplo. Em 18 de agosto de 1850, após a visita de Victor Hugo ao seu leito de morte, o autor da «Comédia Humana» teve um daqueles laivos de vida, que acometem os corpos moribundos antes de, definitivamente, exalarem o derradeiro suspiro.
Afogueado, Balzac apelou a que chamassem o doutor Bianchon, que só ele o poderia salvar.
Espantados, os criados entreolharam-se sem saberem o que fazer. É que não conheciam nenhum médico com esse nome e a que pudessem recorrer.
Não era motivo de espanto sabendo-os iletrados:  Bianchon fora um dos três mil personagens dos romances do escritor e exercia, efetivamente, a medicina como ofício...
2. Igualmente falecido o escritor queniano Binyavanga Wainaina. Mas recentemente, porque a notícia é de há dois meses. Numa das edições da Granta inglesa em 2005, escrevera uma viperina crítica à forma como os europeus costumam olhar para os africanos: “No vosso texto tratam a África como se constituída por um só país. Um ambiente quente e poeirento, uma savana a perder de vista e imensas manadas de animais, sem esquecer as pessoas altas, magras e esfomeadas. Ou, em alternativa, uma atmosfera quente e húmida, com pessoas muito pequenas a comerem macacos. Não se deem ao incómodo com descrições mais detalhadas. A África é gigantesca: cinquenta e quatro países , novecentos milhões de habitantes demasiado ocupados a morrerem de fome, a guerrearem-se ou a emigrarem, para perderem tempo a lerem o que sobre eles venham a escrever.”
3. Outra leitura remete-me para um escritor que detesto quase tanto quanto Céline ou Lobo Antunes. De facto Paul Morand foi antissemita e homofóbico toda a vida, mas sobretudo apoiante incondicional do regime de Vichy, pelo qual foi nomeado embaixador.  Há, no entanto, algo em que convergimos: o encantamento pelo mar.
No meu caso foi cenário da infância e continua a sê-lo nesta fase sexagenária, ao mesmo tempo que nele tive profissão marítima durante duas dúzias de anos. Dificilmente poderia migrar do sítio onde vivo, mas muito menos para onde dele me sentisse apartado mais do que alguns (poucos) quilómetros.
Morand escreveu sobre o mar um pequeno texto que não enjeito subscrever: “Por necessidade vivi quatro anos afastado do oceano. Foi um contínuo incómodo. (...) As montanhas são vagas, mas nunca chegam a desabar: são estáticas, convencionais; lembram-nos sempre a sua idade. O mar não tem idade: se as rugas o cobrem logo se diluem. É um horizonte sem ângulos.”

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