As grandes obras são únicas e só perdem, quando há quem lhes queira sujeitar a injustificadas atualizações. Se o Cinema já demonstrou que, mesmo quando se tratam de prequelas ou sequelas de certos êxitos, os sucedâneos revelam-se quase sempre dececionantes - embora tenha de reconhecer a minha preferência pelo «Padrinho III» em relação aos dois filmes anteriores! - no caso dos remakes fica sempre a questão de perceber o que iria na cabeça dos produtores, quando nelas decidiram apostar o seu dinheiro. Eis o que se justifica pensar, quando se vê a versão de 2018 de «Fahrenheit 451», realizada por Ramin Bahrani, e se a compara com a de 1966 da autoria de François Truffaut. Se esta última era excelente obra, mesmo não se equiparando às melhores do realizador, a gizada meio-século depois só se pode explicar pelo facto de a HBO estar com falta de ideias quanto a novos projetos e ter decidido reciclar propostas, que julgaria esquecidas.
Recordemos que ambos os filmes são baseados num romance publicado por Ray Bradbury em 1953 como metáfora para a caça às bruxas então em curso nos Estados Unidos. Se Hitler mandara queimar livros logo a partir dos primeiros tempos do seu exercício absoluto do poder, filiando-se numa tradição que já vinha de séculos de História, quando o conquistador árabe de Alexandria mandara incendiar a sua lendária biblioteca, outros não enjeitariam seguir-lhe o exemplo: nesses mesmos Estados Unidos foram, por esses anos 50, frequentes as fogueiras atiçadas em montes de livros retirados das suas bibliotecas. Outros, como Salazar, prefeririam o recato para proceder a idêntico expurgo do conhecimento, embora os objetivos fossem os mesmos: impedir a livre circulação das ideias com o receio de que pusessem em causa a sua visão autocrática da realidade.
O filme de Truffaut respeitava a intenção de Bradbury e fazia-nos refletir sobre como teria sido possível chegar a essa sociedade em que os bombeiros já não apagam fogos, porque todas as casas são providas de meios contra incêndios, mas ganham o sustento destruindo bibliotecas. E o final era galvanizante, porque, levado por Clarisse, Montag juntava-se aos que, nas periferias, avançavam para uma inteligente forma de resistência traduzida na conversão dos livros-objeto em livros-pessoas. Oskar Werner e Julie Christie eram inesquecíveis nos respetivos papéis com ela a exercer a dupla interpretação de uma resistente e de uma mulher conformada capaz de denunciar o marido para cumprir o que julga ser o seu dever de acordo com a incontestada realidade.
No filme de Bahrani essa vertente ideológica do romance é ignorada e a preocupação dos argumentistas foi a de apenas se ocuparem do dilema moral de Montag a respeito do seu responsável hierárquico, o capitão Beatty, admirado como mentor e depressa revelado como o pior dos seus inimigos. Há exagerada pirotecnia, farto recurso a cenários computadorizados para os aproximar dos jogos de computadores tão apreciados pela geração dos consumidores de pipocas e é apenas na aposta de uma boa bilheteira, que se fundamenta a existência do filme.
Em poucos dias consome-se e esquece-se da memória. Pelo contrário, passados tantos anos, o de Truffaut permanece indelével como representação de um possível futuro, que quereremos evitar.
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