O cinema escandinavo tem-nos dado múltiplas gerações de excelentes realizadores deles recordando-se filmes, que ficaram como indeléveis referências da História do Cinema. Sjöstrom, Dreyer, Bergman são apenas três nomes de uma constelação com muitos mais.
Nicolas Winding Refn não pode aspirar a patamar tão alto: do que lhe conhecemos fica o registo de alguns títulos interessantes (mormente na passagem para além-Atlântico em que rodou dois com Ryan Gosling), mas sem suscitar grandes entusiasmos.
«Bleeder», segundo título da sua filmografia, tem o interesse de, sendo obra ainda bastante imatura, datada de 1999, só ter tido distribuição fora da Dinamarca em 2016 permitindo compará-lo com os temas recorrentes da sua obra tais quais foram sendo denunciados nos filmes posteriores. E também por ser uma espécie de grito de revolta contra as regras impostas por Lars von Trier com o seu Dogma 95 para serem canonicamente replicadas pelos demais realizadores escandinavos.
Uma das características imediatamente identificáveis nas primeiras cenas é o tributo aos filmes de série B, que o jovem Nicolas consumiu aplicadamente enquanto viveu em Nova Iorque entre os 8 e os 17 anos de idade. Não tardaremos a conhecer os cinco loosers, que seguirão percursos distintos de acordo com os respetivos temperamentos: Leo entra numa longa espiral de violência, que tem por rastilho a notícia da namorada em como irá ser pai. A criança perder-se-á numa das agressões a que a sujeita e por isso será condenado pelo cunhado a uma morte lenta ao ser-lhe inoculado o vírus da sida. Decidido a vingar-se mata-o e mata-se numa sucessão de incómodas cenas sangrentas. Por seu lado Lenny, o tímido empregado de um clube de vídeo, apaixona-se pela empregada de um snack bar e, em paralelo com o percurso homicida de Léo, acompanhamos o da progressiva luta deste seu amigo para vencer-se a si próprio e acabar por convidar a rapariga a sair com ele.
«Bleeder» retrata a Dinamarca da última década do século, gangrenada pela violência e pelo racismo, constituindo Lenny um assumido alter ego do realizador, que levaria a identificação até ao lógico desiderato ao casar na vida real com Liv Corfixen, a atriz que representava o papel de Lea, a empregada do snack. Mas há, igualmente, a abordagem da derrota da virilidade, porque todos os personagens masculinos revelam uma imaturidade, que se reflete na forma como se relacionam com as mulheres e agem com incurável idiotice autodestrutiva. O tema não deixará de estar replicado nalguns dos filmes posteriores do realizador.
No plano formal o filme utiliza o estilo hiper-realista inerente à utilização da câmara ao ombro mas sem descurar o apuro na escolha dos enquadramentos mais expressivos e na globalidade da composição visual. O resultado é o de, com a ajuda dos cenários naturais, tanto nos sentirmos num documentário realista sobre o ambiente em que se movem os personagens, como o de evocarmos filmes norte-americanos sobre outros loosers de bairro. A sensação de claustrofobia em que eles procuram sobreviver é sugerida pelos interiores, sempre atafulhados de móveis, de objetos, senão mesmo da acumulação de heterogéneos montes de sabe-se lá o quê (discos? livros? videocassetes? bibelôs?).
Estamos no microcosmos de uma pobreza irremediável, que tanto se expressa nas carteiras vazias como na falta de cultura de quem sabe listas inteiras de realizadores de cinema, mas pouco saberá sobre as suas obras. E, sobretudo, dessa gestão precária de sentimentos, que poderão revelar-se promissores se nos ativermos ao final aberto, mas também podem redundar numa descontrolada brutalidade.
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