sexta-feira, junho 14, 2019

(DL) Quando Angkor Wat era privilégio de raros visitantes


Escrevendo sobre a experiência vivida em Angkor Wat, Pierre Loti anotou ter visto a «estrela da noite» levantar-se sobre as ruínas do passado. Esses templos perdidos no meio da selva, suscitaram-lhe uma espécie de viagem iniciática, que o aproximou da beatitude budista.
Nessa altura o monumental conjunto de edifícios não fazia parte do circuito turístico internacional permanecendo escondido no meio de abundante selva. Foi aos 51 anos, depois de tanto desejar visitá-los que o infatigável Loti, conhecido por ser o mais jovem académico francês do século XIX, mas sobretudo pelos seus muitos romances situados nos mais exóticos destinos do mundo, conseguiu ali chegar. Embora imbuído de uma mentalidade colonialista, que tornam datados quase todos os seus escritos, não hesitava disfarçar-se no que fosse necessário para passar despercebido onde a sua tez europeia pudesse suscitar desconfianças.
Em 1901, quando estava colocado em Saigão na condição de oficial da Marinha, aproveitou uma licença para ir até ao vizinho Camboja, que alimentava-lhe os itinerantes sonhos desde a infância, quando descobrira Angkor nas ilustrações da «Revue Coloniale». Essa viagem deu-lhe o ensejo de escrever «O Peregrino de Angkor», que estimularia muitos outros viajantes a quererem, igualmente, conhecer aquela que se converteria na «pérola da Ásia».
Logo em Phnom Penh Loti ficou embasbacado com o Palácio Dourado cujo recinto viu atravessado por elefantes. A partir da capital desse reino, que constituía um protetorado francês, Loti iniciou a viagem pelo rio Mekong num barco a vapor reparando no tom metálico do céu a interagir com a superfície líquida esverdeada. O desejo de descoberta era insaciável e logo se viu obrigado a prosseguir a viagem de piroga, porque as margens estreitaram-se, rodeada por densos manguezais, que adotavam a forma de cúpulas sobre as águas sobre que se deslocava.
Foi assim que alcançou o templo mandado construir pelo rei Suryavarman II no século XII para servir de capital do seu reino e ainda justifica todos os superlativos por possuir tão ampla calçada de acesso à principal fachada, tão grandes muralhas e tão prodigiosas esculturas. Ao depará com tão majestoso conjunto arquitetural Loti reencontrou o miúdo que se extasiara com a sua representação ilustrada e decidira dedicar a vida a viajar tanto quanto pudesse.
A experiência no local revela-se acima das já elevadas expetativas: Loti surpreende-se com a algazarra dos insetos e dos pássaros e o quase imediato silêncio, quando a chuva começa a cair e se instala um pesado silêncio. Refugiado no interior das ruínas Loti sente-se como que transportado para um tempo distante, como se a viagem também conhecesse inesperado recuo para o passado, que o enfeitiçava.
No dia seguinte arriscou penetrar na floresta à volta e vislumbrar as ruínas à distância para delas recolher os enquadramentos que viria a recordar nos últimos tempos de vida, quando costumava folhear a revista da sua infância e sentir vivas as emoções, que a peregrinação a Angkor lhe suscitara.
A viagens de então possuíam a imprevisibilidade das grandes aventuras, hoje inexequíveis com as multidões, que ocupam os espaços outrora suscetíveis de possibilitarem a perceção do espírito do lugar em quem os tinha a sorte de visitar.

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