quarta-feira, junho 05, 2019

(VOL) Vendo, ouvindo e lendo sobre... Miguel Seabra, Karen Carpenter, Tailândia, Tiananmen, vulva e uma jovem realizador alemã


1. Na mais recente entrevista de Aurélio Gomes no seu programa «Baseado numa História Verídica» (canal Q às sextas-feiras), que teve por convidado Miguel Seabra, foi penoso vê-lo questionar sobre o AVC sofrido por este quando tinha apenas 30 anos e passou a estar condicionado para a sua atividade como ator, encenador e principal responsável pelo Teatro Meridional.
Teriam sido preferíveis as questões sobre as dificuldades por que passa uma companhia teatral, imerecidamente, privada de apoio da DGArtes ou como foi preparado esse espetáculo maravilhoso, que se intitulou «O senhor Ibrahim e as Flores do Corão», impossível de ser melhor interpretado por outrem que não o próprio Miguel Seabra.
Até mesmo jornalistas que nos merecem respeito são, às vezes, tentados a explorarem a mais obscena coscuvilhice.
2. A mesma lógica está reproduzida num documentário apresentado pelo canal franco-alemão ARTE, e que tem na morte trágica de Karen Carpenter o seu fulcro. Como foi possível ver o sucesso potenciar, em vez de obstar, a irreversível descida da cantora para o abismo fatal, ninguém atalhando as decisões necessárias para evitar que a anorexia tomasse proporções tão graves? A satisfação da morbidez dos espectadores explica um trabalho dessa natureza, embora não se omita a demonstração de como os Carpenters eram muito apreciados por Richard Nixon, que os tomava como exemplos contrários de uma geração irreverente e apostada em diaboliza-lo. A tragédia, que cerceou a vida de Karen aos 32 anos, foi o produto de uma educação conservadora, personificada na mãe castradora, apostada em controlar todos os passos dos dois infantilizados filhos. Nesse sentido a coscuvilhice é compensada pela denúncia de uma mentalidade, que persiste em muitos quantos votaram em Trump para lhes devolver a sinistra América do passado.
3. Outro exemplo de ditadura anacrónica é a da Tailândia, onde qualquer expressão dúbia, interpretada como crítica ao rei, legitima longas penas de prisão para os infratores. Quem o revela é José Luís Peixoto no livro dedicado ao grande país asiático («O Caminho Imperfeito»), descrito como destino turístico a evitar. Porque a beleza das suas praias, recuperadas depois do mortífero tsunami de há quinze anos, ou o exotismo de Banguecoque, entre os monges e os ladyboys, não justificam o choque de ver espezinhados os valores humanos mais pertinentes.
4. No mesmo continente toma-se a China como bombo da festa a propósito do trigésimo aniversário do esmagamento da manifestação estudantil da Praça Tiananmen.
Neste momento de maniqueísmo tão primário, quanto o dos anos 50, quando os norte-americanos sofriam pesadelos com a iminente invasão vermelha, o Ocidente é manipulado por sucessivas vagas de desinformação da CIA e outras agências aparentadas, que tudo farão para adiar, tanto quanto possível, o dia em que a China alcançará o estatuto de principal superpotência mundial. Agora tudo serve para acusar os chineses de incomensuráveis patifarias, aproveitando para denegrir a suposta «ditadura comunista», quando está bem à vista o seu carácter de capitalismo estatal.
O que mais impressiona nos «críticos» de Pequim é o seu total desconhecimento da realidade ali prevalecente, tomando como boas as desinformações, que multiplicam mentiras  sobre quanto ali se passa. Mesmo não tendo ali voltado nos últimos vinte anos, não esquecerei os meses vividos em Xangai, contactando diariamente com engenheiros e operários de um dos seus estaleiros. E o que ali vi foi uma vontade enorme de aprender as melhores práticas ocidentais para as replicar e superar, não havendo quem ali vertesse uma lágrima por quantos dez anos antes haviam sido manipulados no sentido de replicarem em Pequim o que em Moscovo a espionagem ocidental concretizou com maior sucesso.
Tivessem levado por diante o seu intento e os revoltosos de Tiananmen teriam feito recuar a China para a trágica realidade russa dos nossos dias. Derrotados, viram o seu país preparar-se para humilhar um imperialismo brutal, por muitos ainda tido como virtuoso.
5. Num documentário sobre o corpo feminino surge o incómodo de umas quantas jovens em definirem a palavra mais adequada para se referirem ao seu sexo. Vagina é a mais recorrente, por possuir uma conotação médica e isentar-se de conotações mais negativas. E, no entanto, enquanto órgão, que se esconde quase na totalidade no interior do ventre da mulher, a vagina deveria ser substituída pelo mais rigoroso substituto: vulva.
O filme chamava-se precisamente «Viva a Vulva!» e demonstrava como tardam em ser derrubados os tabus relacionados com a sexualidade feminina ao contrário do assumido orgulho com que é considerada a dos homens. E o futuro parece complicar-se, sobretudo pela desinformação suscitada nos mais jovens por uma pornografia, que lhes dá ideias profundamente erradas quanto à forma como podem sentir e dar prazer.
6. Às vezes quando se descobre um cineasta até então desconhecido cuidamos de lhe decorar o nome para não perdermos as obras anteriores ou as que se seguirem à da descoberta. Com Angela Schanelec, apresentada como vulto importante da Nova vaga alemã, essa preocupação justifica-se por motivo oposto: o seu filme «O Percurso Sonhado», que realizou em 2016, é tão intragável que guardar-lhe o nome na memória servirá para evitarmos tempo mal gasto com o que vier a criar.
A pretensão é imensa, com múltiplos e repetidos planos de pés e mãos, omitindo os bem mais elucidativos rostos e a aposta em elipses, que sonegam informações necessárias a encontrarmos na história algum sentido, que nunca se chega verdadeiramente a encontrar. Uma única conclusão: entre mortes e despedidas, os personagens são uns tristes, que nos são completamente estranhos. Porque, nem na sua infelicidade, nos suscitam eventual compaixão.

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